Renúncia

Renúncia
Título: Renúncia
Autor: Francisco Cândido Xavier
Pelo Espírito: Emmanuel
Género: Romance
Editora: FEB
Observações: Edição de 2015, 36ª edição. Lançado em 1944

Esta é uma obra que surge na sequência de duas outras, “Há dois mil anos” e “Cinquenta anos depois”, do mesmo autor espiritual (Emmanuel) e testemunhando com grande primor vivências suas em diferentes reencarnações. Esta é uma obra com profundos ensinamentos morais sobre o amor e o compromisso por alguém que amamos antes de nascer. É ainda sobre a dimensão do mal humano pela sua distorção face ao que realmente é importante. É, assim, sobre a renúncia para que se faça o bem sobre o mal perante quadros de lutas terrenas com consequências e decorrências espirituais. A personagem central deste romance, Alcione, é uma alma cuja dimensão espiritual se coloca longe, pela sua evolução enquanto espírito, de onde habitualmente, nós, nos conseguimos posicionar perante a vida e os outros. Outra personagem central é o padre Damiano (Emmanuel), cujos ensinamentos se vincam nas vivências das personagens e nos folhos subconscientes do leitor. A vivência de Alcione, em torno do qual se desenrola a trama da vida, sucede em Paris, no temeroso séc. XVII, e em Ávila (Espanha).

Citações

“O moço castelhano estava enlevado. Afinal de contas, não era isso mesmo que tentara, em vão, descobrir? Procurara ardentemente uma fórmula sutil, que somente agora lhe aparecia por inspiração de Susana, ali, junto dos sepulcros, onde não havia olhos nem ouvidos humanos capazes de recolher o segredo terrível. Olhar fixo, abstraído de quaisquer outras cogitações, ele experimentava a renovação dos recalcados impulsos. A sugestão dava-lhe a vitória. Sentiria prazer em comunicar a Madalena que o marido se abismara no torvelinho das águas insondáveis. Levá-la-ia à Espanha e, de lá, se possível, demandariam a América do Sul, cheia de lendas fantásticas. Daria largas ao espírito aventureiro que lhe palpitava nas veias. A prima, em breve, se escapasse à varíola, teria uma criancinha necessitada de proteção paternal. Dar-lhe-ia essa proteção. E aos seus olhos afigurava-se incrível que Madalena lhe repelisse a afeição em tão duras circunstâncias.” (p.119)

“— Vossos esclarecimentos quanto à oração me surpreendem; contudo, necessito expor minhas dúvidas mais íntimas. Não teria Deus concedido ao mundo a faculdade de rezar, a fim de que a alma humana aprendesse a pedir? Sempre conheci essa manifestação do sentimento como rogativa. Considero, entretanto, que, se toda a nossa atividade religiosa estivesse circunscrita aos atos precatórios, não passaríamos, neste mundo, de uma assembleia de mendigos. Que dizer do homem que reclamasse, de mãos postas, o manjar do céu, somente por reter o suor na semeadura do seu quintal? Poderá alguém insistir na obtenção da verdadeira paz, quando ainda disputa a ferro e fogo a posse de bens perecíveis? Chegará alguém à esfera dos anjos, quando ainda não chegou a ser homem?

Reconhecendo o interesse despertado por suas palavras, Damiano sentiu-se encorajado e continuou:

— Naturalmente que deveremos apelar para o Céu, mas, no interpretar a prece como rogativa, suponho que não devemos ir além do “Pai Nosso”, porque, acima de tudo, julgo que a oração deve ser um esforço para nos melhorarmos. Deus nos procura a todo o momento e o ato devocional será, então, tarefa incessante do espírito, apagando as imperfeições, para que o Pai nos encontre.

— Mas, criaturas há que maldizem o destino — acrescentou Madalena sumamente interessada. — Como não importunar o Céu, quando padecemos necessidades angustiosas? Para muita gente, a Terra não passa de odioso degredo e o corpo representa escuro cárcere.

— Não creio. Só há mendicidade em nossa alma. E no que se refere a paisagens do mundo, o próprio deserto tem a sua beleza. As estradas que pisamos estão repletas de perspectivas encantadoras. Uma folha da primavera ou um punhado de areia são documentos da glória de Deus em nossos caminhos. Quando nos referimos a regiões sombrias ou desoladas, geralmente esquecemos que elas se localizam em nosso mundo íntimo. A noção de cárcere, como a dor do remorso, nunca foram observadas no horizonte azul nem no canto dos pássaros, simplesmente porque residem dentro de nós mesmos.

— E o sofrimento, padre Damiano? — perguntou Madalena Vilamil, já tocada por aqueles altos conceitos. — Que me dizeis do problema do destino e da dor? Nosso futuro espiritual, após a morte, não está encerrado no céu, no purgatório ou no inferno, sem remissão?

O interpelado sorriu e esclareceu:

— Esta palavra, ouvida pela Inquisição, representaria um crime de traição para o fanatismo de nossa época e nos levaria à fogueira. Esta circunstância nos leva a refletir na magnitude da tarefa a realizar, mas, se eu disser que minha interpretação é diferente? A morte não existe como a entendemos. O que se verifica, apenas, é uma transmutação de vida. Os teólogos suprimiram a chave simples das nossas crenças. Quando o corpo é reclamado pelo sepulcro, o Espírito volta à pátria de origem, e como a Natureza não dá saltos, as almas que alimentam aspirações puramente terrestres continuam no ambiente do mundo, embora sem o revestimento do corpo carnal. Desde a mais remota antiguidade, os homens se comunicaram com os seus semelhantes já mortos.

E, ante o olhar admirativo da jovem senhora, Damiano passou a recordar:

— Eneias fez consultas a Anquises, por meio dos estranhos poderes da feiticeira de Cumas; Plutarco afirmava que os seres de outro mundo se manifestavam nos Mistérios; Sócrates tinha seu gênio familiar; Apolônio de Tiana sentia-se auxiliado por entidades invisíveis; os imperadores romanos buscavam os pareceres dos habitantes de Além-Túmulo, com a cooperação dos Oráculos; Vespasiano procurou a palavra dos numes tutelares no Oráculo de Geryon; Tito fez o mesmo na Ilha de Chipre; Trajano imitava-os, sondando as revelações do Oráculo de Heliópolis, na Síria; os cronistas do tempo antigo declaram que Augusto, depois de iniciado no culto de Elêusis, tinha contato com os fantasmas; nas páginas sagradas da Bíblia vemos Saul procurando o falecido Samuel por intermédio da pitonisa de Endor, e contemplamos os discípulos de Jesus bafejados pelo Espírito-Santo, no glorioso dia do Pentecostes…

— É extraordinário! — exclamou a esposa de Cirilo felicitada por novas luzes. — Quer dizer que os entes queridos, que nos antecedem no túmulo, nos esperam no limiar da outra vida, para as alegrias do reencontro?…

Damiano esboçou um gesto altamente significativo e acrescentou:

— Nem sempre será indispensável partir para reencontrar…

— Por quê? — interrogou admirada.

— Nossa época não comporta a divulgação das supremas verdades,

mas nós nascemos e renascemos. A vida é uma só; entretanto, as experiências são diversas. O próprio Jesus declarou aos mentores de Israel que não era possível atingir o Reino de Deus sem renascer de novo. Inferno ou purgatório são estados do espírito em tribulação por faltas graves, ou em vias de penitência regeneradora.

A “viúva” Davenport teve a sensação de haver sido levada a um porto de grandiosas revelações.” (p.158-9)