O Passe

 

“Como a todos é dado apelar aos bons Espíritos, orar e querer o bem, muitas vezes basta impor as mãos sobre a dor para a acalmar; é o que pode fazer qualquer um, se trouxer a fé, o fervor, a vontade e a confiança em Deus”

(Allan Kardec, Revista Espírita, Setembro 1865)

São conhecidos os efeitos da exposição biológica ao campo electromagnético, nomeadamente às frequências de distribuição de energia elétrica de 50 Hz e 60 Hz, mesmo em ambiente doméstico. No nosso quotidiano estamos rodeados de campos magnéticos originados nos mais diversos meios, tais como redes de transporte de energia elétrica, telecomunicações, equipamentos domésticos ou industriais. São conhecidos os efeitos imediatos ou a curto prazo destes campos na saúde humana, mas pouco se sabe sobre as consequências a longo prazo [1]. Todavia, estes não são os únicos campos magnéticos a envolver a existência humana. Todos dispomos de magnetismo, dito animal, ou humano, o qual pode ser mobilizado em favor da saúde humana.

O conhecimento sobre os efeitos do magnetismo animal (ou seja, dos seres viventes) data de, pelo menos, 2500 a 2700 anos antes de Cristo. A utilização desta forma de magnetismo é praticada na medicina oriental (ou tradicional) fazendo-se referência ao sistema de circulação da energia pelos meridianos do corpo humano. A perceção do magnetismo animal no ocidente tem raízes em Hipócrates (460 a.C., considerado pai da Medicina), o qual relata:

Médicos experientes podem confirmar que o calor que flui das mãos, quando aplicado em doentes, é altamente salutar. Enquanto deixo minhas mãos sobre meus pacientes, sinto como se uma força puxasse para fora as dores dos locais afetados, assim como diversas impurezas” [2].

Aristóteles (384 e 322 a.C.) também teorizou sobre este assunto no seu “Tratado sobre a Alma”, no qual faz uma analogia entre a ação da alma (a génese que imprimia movimento aos animais) e a do íman (gerador de movimento em metais ferrosos). Outras importantes referências são Paracelso (séc. XIV, fundador da Bioquímica e da Toxicologia) e Rudolph Göckel der Ältere (inventor do termo “psicologia” em 1590).

A perceção do magnetismo animal foi sendo desenvolvida e compreendida como uma doutrina de cunho filosófico voltada para o aperfeiçoamento moral do homem que acredita na possibilidade de autodesenvolvimento psíquico e moral [3]. Esta perceção foi tornada ciência pela mão de Franz Anton Mesmer (1734 – 1815), médico alemão e doutor em filosofia.

Mesmer modificou o entendimento sobre o magnetismo elevando-o da condição sobrenatural para a de estudo de propriedades de uma condição natural. Foi Mesmer quem introduziu, em 1773, o termo “magnetismo animal” tendo postulado a existência de um fluido magnético universal que poderia ser usado para efeitos terapêuticos.

Neste sentido é correto dizer-se que o passe praticado na casa espírita tem a sua origem no conhecimento produzido por Mesmer, tal como acontece com a prática terapêutica a partir da magnetização da água. O trabalho de Mesmer marca profundamente a Doutrina Espírita. Kardec, em 1858, refere que o magnetismo “preparou o caminho do Espiritismo e os rápidos progressos desta última doutrina são devidos, incontestavelmente, à vulgarização dos conhecimentos sobre a primeira. Dos fenómenos do magnetismo, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas, não há mais que um passo…” (Moreil, 1986, p. 47).

A respeito do passe e sobre quem o ministra, Allan Kardec instrui os médiuns da seguinte maneira:

A primeira condição para isto é trabalhar em sua própria depuração (moral e ética), a fim de não alterar os fluidos salutares que está encarregado de transmitir. Esta condição não poderia ser executada sem o mais completo desinteresse material e moral. O primeiro é o mais fácil, e o segundo é o mais raro, porque o orgulho e o egoísmo são sentimentos difíceis de se extirpar, e porque várias causas contribuem para os superexcitar nos médiuns” (Allan Kardec – Revista Espírita, Novembro, 1866).

O indivíduo que dá o passe (o passista) necessita de cultivar em si diversos atributos de reforço moral, tais como a fé, o amor ao próximo, a disciplina, a vontade, o conhecimento, o equilíbrio psíquico, a humildade, o devotamento, a abnegação. No livro “Segue-me”, o Espírito Emmanuel refere o seguinte a este respeito:

Se pretendes, pois, guardar as vantagens do passe, que em substância, é ato sublime de fraternidade cristã, purifica o sentimento e o raciocínio, o coração e o cérebro“.

Sobre a forma de se dar e receber o passe é sabido que encenações preparatórias, tais como:

mãos erguidas ao alto e abertas, para suposta captação de fluidos pelo passista, mãos abertas sobre os joelhos, pelo paciente, para melhor assimilação fluídica, braços e pernas descruzados para impedir a livre passagem dos fluidos, e assim por diante, só servem para ridicularizar o passe, o passista e o paciente” [4].

O passe deve ser silencioso, discreto e dispensa o toque, a qualquer pretexto, na pessoa que o recebe. A transmissão faz-se de aura a aura, faz-se pelo magnetismo do passista e por assistência do plano espiritual. Porque o toque pode despertar reações que contrariam a boa receção de fluidos, ou mesmo criar situações de embaraço, sugere-se fortemente que se garanta alguma distância entre as mãos do passista e o corpo da pessoa que recebe o passe.

Sugere-se ainda que o passe seja dado de olhos abertos para evitar que o passista toque por descuido em quem recebe o passe, por exemplo, pela falta de perceção da distância ao corpo.

A concentração pode ser conseguida tanto de olhos abertos como fechados, mas sobretudo deve ser feita pela intenção e intensidade de amor impresso no ato, o qual não depende de ruídos (exemplo, soprar ou inspirar), toques, movimentos estranhos e circulares (exemplo, para cima e para baixo ou em rotação), ou de dizeres (sejam eles quais forem). A boa prática no passe é a discrição e a concentração do passista no ato em si, ou seja, a intensidade do pensamento dirigido ao alto e a firme vontade de ajudar.

André Luiz, no livro “Conduta Espírita” [5], refere ainda que o passe dispensa qualquer recurso espetacular, e José Herculano Pires, no livro “Mediunidade” [6], diz que este é tão simples que não se pode fazer nada mais do que dá-lo. Allan Kardec, dirigindo-se aos médiuns, deixa a seguinte nota:

Apenas sua ignorância lhes faz crer na influência desta ou daquela forma. Às vezes, mesmo, a isto misturam práticas evidentemente supersticiosas, às quais se deve emprestar o valor que merecem” (Revista Espírita, Setembro de 1865).

O Espiritismo não define uma metodologia para o passe, mas distingue perfeitamente a boa da má prática. Acima de tudo, o passe só surte efeito se o passista tiver dentro de si uma vontade de ajudar aliada a condições morais salutares para o concretizar. Por melhor que seja a metodologia, se o passista for um indivíduo de má índole, o passe nunca terá bons resultados.

Distinguem-se três tipos de passe. A ordem com que os vamos apresentar não tem correspondência com nenhuma hierarquização de valor.

Primeiro, o passe magnético, que se baseia na doação dos fluídos por parte da pessoa que executa o passe, pelo que essencialmente utiliza a força magnética do próprio corpo perispiritual. Teoricamente qualquer pessoa pode dar passe, sendo que as qualidades do passe variam segundo a condição moral, a capacidade de doar fluidos e o desejo sincero de amparar o próximo por parte do passista.

Segundo, o passe espiritual, que equivale a uma magnetização feita pelos bons Espíritos atuando diretamente no perispírito da pessoa enferma ou perturbada. O necessitado não recebe fluídos magnéticos de um passista, mas sim dos planos superiores da Vida, pelo Espírito, que assiste ao ato do passe. Estes são fluídos mais finos e puros.

Terceiro, o passe misto, que mistura os fluidos do passista com os da Espiritualidade. Desta combinação resulta um efeito mais salutar. Este é o passe que se aplica na Casa Espírita, o qual conta com a ajuda de equipas espirituais que trabalham nessa área de ajuda aos necessitados [7].

Da prática que conhecemos, o passe pode ser feito a partir das seguintes sequências.

Iniciar fazendo-se a limpeza do corpo perispiritual de quem o recebe, por meio de movimentos longitudinais com as mãos ao longo do corpo do assistido. O passista inicia estes movimentos na cabeça e prolonga-os pela zona frontal do tronco (tórax e abdómen). O movimento sugerido faz-se de cima para baixo e não de forma inversa. Repetir até três vezes estes movimentos.

Preparado o corpo perispiritual para a receção dos fluídos inicia-se a sequência seguinte. O passista impõe as suas mãos sobre a parte superior da cabeça do assistido (centro vital principal do corpo perispiritual do indivíduo), concentrando aí a energia. É importante notar que Jesus, de forma análoga, curou muitos doentes impondo aí as suas mãos.

Em seguida, o passista movimenta uma das mãos e aplica-a sobre o frontal da cabeça (segundo centro vital) permanecendo a outra sobre a parte superior da cabeça. Depois de concentrar energia por breves instantes nesses dois centros vitais inicia o movimento de cima para baixo passando suavemente e lentamente sobre os restantes cinco pontos de captação energética do corpo. Fá-lo descendo da zona da cabeça (coronário e frontal), para a zona da garganta (laríngeo), passando depois pelas zonas do coração (cardíaco), do baço (esplénico), da barriga (gástrico) e finalmente do baixo-ventre (genésico), detendo-se alguns instantes em cada um dos referidos pontos.

A última sequência do passe consiste na dispersão da energia por todo o corpo perispiritual de modo a que esta não fique concentrada nos centros vitais, o que poderia causar algum desconforto ao assistido. O passista deve então efetuar movimentos idênticos aos utilizados no início do passe – conduzindo ambas as mãos ao longo do corpo do assistido de cima para baixo. Os movimentos devem ser suaves. Caso contrário, em vez de se contribuir para o espalhar da energia estar-se-ia a removê-la do assistido.

Por fim, alertar a pessoa quando o passe termina, por exemplo, tocando-lhe no ombro e eventualmente dizendo-lhe: “muita paz”. Notar ainda, a título de exemplo, que a mobilização de energia junto do cardíaco em pessoas de alguma idade pode não ser muito benéfica, pelo que se deve evitar a retenção das mãos sobre essa zona.

Relativamente ao trabalhador da casa espírita, não há necessidade deste receber passe no final dos respetivos trabalhos uma vez que à medida que aplica o passe, este vai sendo automaticamente fortalecido de fluidos salutares transmitidos pelas equipas espirituais que o assistem.

Note-se também que se o passista estiver em condições físicas e espirituais sadias e o trabalho for devidamente orientado, mesmo que o passista sinta algum cansaço físico, isso não corresponde a desgaste fluídico.

É ainda de salientar que se devem evitar os passes em domicílio para não favorecer o comodismo do assistido. No entanto, em casos de doença grave ou impossibilidade total do assistido em se dirigir à casa espírita, sim, o passe deve ser ministrado no seu lar, e, se possível, por uma pequena equipa, enquanto perdurar o impedimento. Sendo o passe um ato de amor, este não deve ser negado ou evitado quando se identifique a possibilidade de alívio na sua ação.

Face aos descrito relativamente à mobilização do magnetismo humano e espiritual percebem-se as diferenças entre o passe na Casa Espírita e outros eventualmente ministrados noutros contextos, nomeadamente se houver algum interesse material (pagamento) pela sua execução, ou ainda se não houver uma boa envolvente espiritual (uma equipa).

Porém, o passe é um ato de ajuda e não se destina somente a quem compreende o espiritismo, ou se interessa pelo seu conhecimento. Este deve ser dirigido pela intenção e fé na ajuda a prestar. “A cada um segundo as suas obras”, pelo que independentemente da crença ou compreensão do que é transcendente à pessoa, Deus sempre assiste, pois, “…muito embora uma pessoa desejosa de fazer o bem não acredite em Deus, Deus acredita nela”.

 

Referências

[1] Recuperado de http://www.it.uc.pt/ps/pspub/es97cp01.pdf.

[2] HIPÓCRITES, apud, De’Carli, 1998, p. 55.

[3] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Magnetismo_animal#cite_ref-37.

[4] Recuperado de http://www.camilleflammarion.org.br/passe_espirita.htm.

[5] VIEIRA, W., pelo Espírito André Luiz, Conduta Espírita, FEB, 1960.

Título: Conduta Espírita

[6] PIRES, J.H., Mediunidade, 5ª Edição, EDICEL, 1984. Recuperado dehttp://bvespirita.com/Mediunidade%20-%20Vida%20e%20Comunicacao%20(J.%20Herculano%20Pires).pdf.

[7] Recuperado de http://www.espirito.org.br/portal/doutrina/espiritismo-para-iniciantes-7.html.