O trabalho e as gerações enrascadas

 

A canção “que parva que sou” retrata a realidade de milhares de jovens. É uma canção sobre mim, sobre ti, sobre os nossos pais, podia ser afinal uma canção sem idade. É sobre uma geração, de qualquer uma. É sobre a falta de trabalho, sobre um vazio, mas afinal quem fez esse vazio? Será ele o resultado do desatino económico ou do desalinho espiritual, ou de ambos – coveiro da própria sorte, ou obreiro da mudança?

 

“Deolinda” é o nome do grupo de música português que em 2011 arrebatou os Coliseus de Lisboa e do Porto com a canção “que parva que sou”. Uma canção sobre uma geração de jovens que vive sobre o estigma da precaridade e da falta de oportunidades de trabalho. É sobre uma geração dita “à rasca”.

 

A letra da canção diz assim:

Sou da geração sem remuneração / e não me incomoda esta condição.
Que parva que 
eu sou!
Porque isto está mal e vai continuar, / já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou!
E fico a pensar, / que 
mundo tão parvo / onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘casinha dos pais’, / se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou!
Filhos, maridos, estou sempre a adiar / e ainda me falta o carro pagar
Que parva 
que eu sou!
E fico a pensar, / que mundo tão parvo / onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’ / Há alguém bem pior do que eu na TV.
Que parva que eu sou!
Sou da geração ‘eu já não posso mais!’ / que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou!
E fico a
pensar, / que mundo tão parvo / onde para ser escravo é preciso estudar.

 

Os versos são simples, mas densos. Sintetizam, na perfeição, o estado de alma na sociedade contemporânea. Eles criam um forte sentido de identificação em muitos portugueses (e não só), nomeadamente na dita crise financeira. No entanto, se relermos os versos à luz do conhecimento espírita, à luz da lei de causa e efeito, da reencarnação, então talvez possamos encontrar neles algumas respostas para a mudança indo o seu significado para lá do momento vivido.

A mudança não se esgota num acréscimo salarial no fim do mês, nas compras que o dinheiro permite, nem tão pouco na efémera aparição na TV ou nos jornais, em que se gastam os chamados “15 minutos de fama”. A mudança está na forma como interpretamos o que nos rodeia, ou seja, na luz que lançamos sobre os objectos e na sombra por estes produzida, pois esse conjunto altera a nossa perceção do objeto. É a «visão sextante», pelo que vale a pena tentarmos mudar a perspetiva para buscar novas respostas.

Quando se diz que a sementeira é livre, mas a colheita obrigatória, repetindo o ensinamento de Jesus, estamos a sublinhar que se pode escolher o que queremos e como o vamos fazer, mas o efeito é sempre resultado da causa. Toda a ação tem uma reação, pelo que se hoje encontramos o desemprego é porque, eventualmente, ontem desperdiçámos a oportunidade de o cumprir com lisura. Sim, pode parecer confuso, mas afinal o que é o ontem?

O espiritismo diz-nos que o “ontem” também pode ter sido numa vida passada, pelo que o presente depende das ações despoletadas num tempo mais ou menos distante, relativo a reencarnações passadas. Estas, se refletidas sobre as nossas tendências, hábitos mais vincados e tipo de pensamentos, podem exibir um certo padrão. Esse padrão pode corresponder a tendências de comportamento mental herdado de atitudes e carácter do nosso “eu” do passado – de vidas passadas. Esse “eu” pode estar em mudança, mas ele não se altera sem o correspondente trabalho de reforma íntima. E os efeitos face às causas terão de ser vividos tal como dita a lei de causa e efeito que pondera a vivência e evolução moral do espírito.

Observemos o mérito e o orgulho, a humildade e a vaidade, a coragem e a irresponsabilidade. Reflitamos sobre o motivo que leva algumas pessoas a faltarem constantemente ao trabalho, a serem desonestas com colegas e patrões, a esquivarem-se a obrigações, a serem um pranto de queixas de tudo e mais alguma coisa, ou de não se deterem na crítica sagaz, no mal dizer.

Pensemos naquelas pessoas que não param de lutar, que se humildam face ao que não sabem, que se questionam para buscarem soluções. Questionemos sobre o que faríamos se fossemos os empregadores, se negligenciámos a nossa responsabilidade social para com as famílias dos nossos colaboradores, ou sobre se a maximização do ganho é o único fim. Pois, no fim, a única coisa perene, que perdura, é o conhecimento, os laços entre as pessoas, o comportamento ético, o que se faz de bem pelo outro. Neste âmbito, o dinheiro e a riqueza são efémeros. Lembremos que tudo o que temos na Terra é-nos entregue por empréstimo, pelo que toda a posse, o status, as coisas, nela ficam após a morte. É tudo utensílio de trabalho em favor do nosso desenvolvimento humano e espiritual.

A vida vai-se traduzindo na resolução, ou no acumular de “divida” (causas), simultaneamente que somos convidados ao progresso, ao trabalho em equipa, à caridade, a nos cuidarmos para nos proporcionarmos melhores efeitos futuros. Somos nós que decidimos, somos nós que desenhamos esse futuro pelo exercício do livre arbítrio [4]. Tudo está em relação connosco mesmo. As respostas estão em nós, não no que desejamos ou que pertence a outras pessoas.

Temos de aprender a assumir plenas responsabilidades sobre a relação entre o que somos intimamente e as escolhas que fazemos. Temos de identificar os efeitos a que estamos sujeitos face ao tipo de sentimentos que habitualmente nutrimos pelos outros no nosso dia a dia — afeto, compaixão, empatia…

Estejamos atentos e procuremos o nosso “eu” nos exemplos que nos rodeiam. Não critiquemos. Façamos alguns exercícios de autoconhecimento. Observemos o número de vezes que fomos (somos) aquele a quem apontámos o dedo.

Na observação do nosso íntimo vamos encontrar a causa das nossas amarguras, pelo menos de algumas. E se isso ainda não for visível é porque o nosso ego ainda está a embaciar a janela pela qual o nosso Self (o “Eu maior”, a alma) se quer mostrar e transformar para melhor o que somos.

A causa provavelmente está para lá do véu da nossa memória, mas nunca para lá da relação de causa e efeito, pelo que é importante que não nos sintamos uma vítima face à dor, mas que compreendamos que somos a sua ignição. Sejamos humildes para podermos aceitar quando dói, quando não compreendemos a razão do presente que se vive. Aceitemos para que não seguremos a revolta ou a angústia dentro de nós.

Por isso, não tenhamos medo, não percamos tempo, mas sejamos pacientes perante a dor. Usemos esse período para nos recolhermos ao nosso íntimo e aí burilarmos soluções e alcançarmos a cura, que está em nós. Ao fazê-lo estamos a corrigir o nosso comportamento mental e a evitar a dor ou a melhorar a forma de lidarmos com ela.

A vida é uma “cadeira de cartão” e nós procuramos o seu assento vezes a mais. A sua construção faz parte dos exercícios de evolução, não a nossa posição nela. Vamos falhando e aprendendo, mas quanto mais depressa aprendermos menos dor vamos sentir, ainda que possa continuar a ser difícil. Porém, nunca será para lá do sentido do ensinamento de Jesus: “a cada um segundo as suas obras”. Tenhamos sempre presente que ninguém vive o seu presente por favor ou desfavor de Deus, mas sim na consequência das próprias escolhas. E estas estão sujeitas a Leis morais.

As Leis morais, ainda nos parecem impercetíveis, pelo que são de difícil assimilação. No entanto, são bem concretas e com profundo reflexo na vida de cada um. Uma dessas leis é a referida Lei de Causa e Efeito [1] [2], à qual se refere o item 964 de “O Livro dos Espíritos”:

Todas as nossas acções são submetidas às leis de Deus; não há nenhuma delas, por mais insignificante que nos pareçam, que não possa ser uma violação dessas leis. Se sofremos as consequências dessa violação, não nos devemos queixar senão de nós mesmos, que nos fazemos assim os artífices de nossa felicidade ou de nossa infelicidade futura.” [3]

E pode a oração valer-nos?

Sim, a oração é um instrumento que pode ser usado para o alívio face à dor, para a inspiração face à dúvida, para o fortalecimento face à quebra. Contudo, não evita o efeito face à causa.

Tome-se o exemplo da ação da força da gravidade para percebermos, por analogia, o efeito das leis morais de Deus. Se orarmos para que um copo, que vamos largar da nossa mão, não caia, é improvável que a ação da lei da gravidade se anule. Por mais que oremos o copo cai. Porém, a oração até pode providenciar a atenção de alguém que o apanhe antes que toque o chão, mas o copo vai ter sempre uma trajetória descendente em direção ao solo. Deus criou a lei da gravidade, não a vai alterar. Todavia, podem ser criadas condições para que os efeitos sobre determinado acontecimento possam ser mitigados. O mesmo sucede com a aplicação das leis morais, ou seja, a lei de causa e efeito no que se refere às coisas do espírito – as ações e seus resultados de consequências morais.

Na Boa Nova de Jesus também se fala de trabalho como força motriz para a evolução espiritual de cada um. O trabalho é uma lei da Natureza, pelo que se constitui como uma necessidade [5]. No livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo” é referido que o “trabalho se impõe ao homem por ser uma consequência da sua natureza corpórea. É expiação e, ao mesmo tempo, meio de aperfeiçoamento da sua inteligência. Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência. Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar dependem do seu trabalho e da sua actividade. Ao extremamente fraco de corpo outorgou Deus a inteligência, em compensação. Mas é sempre um trabalho.” (Cap. XXV, item 2. Ver também cap. IV, item 17) [5]

O trabalho não é somente um veículo de sustento financeiro ou de percurso profissional, pelo que o seu papel no alinhamento da própria condição humana e evolução espiritual, não pode ser descurado. Por isso, não devemos fazer do trabalho (no sentido -único- do ganho material) a cadeira de cartão onde queremos assentar a vida. Fazê-lo é desperdiçar a oportunidade que este nos traz. Mas se o trabalho falta e a dor se instala, qual é o propósito?

Não sabemos, mas podemos indagar se em nós ainda há vestígios de ambição, vaidade, orgulho, ou mesmo de preguiça, desleixo. Podemos indagar se temos esse comportamento para com a família, amigos ou, sobretudo, para com quem nos empregou, chefiou, ou para quem empregámos, chefiámos.

Importa identificar eventuais traços salientes no nosso carácter para nos modificarmos, e, assim, evitarmos cair no mesmo erro. Neste contexto, podemos dizer que a oportunidade face à dificuldade está no tempo disponibilizado para a busca interior, para alguma autoanálise. E porque a vida nada tem de castigo, mas sim de geração de oportunidades de melhoria íntima, a falta de trabalho também pode ser uma forma de Deus nos proteger de nova queda até que fiquemos preparados. Assim, a questão a colocar é se estamos a fazer o suficiente para quando a oportunidade nos bater de novo à porta (fazer isto em vez de matutarmos sobre se foi o azar que nos visitou).

Naturalmente que estamos a generalizar e a simplificar todas as relações de impacto que uma tal situação provoca. Porém, o objetivo é aprendermos a tirar algum benefício face à dor. Mas também, aprendermos a melhorar a forma como lidamos com o nosso ego, com os outros, com a vida. A vivência da precariedade pode ser a oportunidade para o exercício da humildade, paciência e reflexão sobre o que faríamos se pudéssemos ter nova oportunidade. Os constrangimentos da precariedade podem ser o gatilho para dizermos basta à vitimização, ao mal dizer, ao nada se fazer, ao atirar de culpas para os outros, ou para o dito “sistema” – que afinal também ajudamos a manter.

A precariedade não é um castigo, mas parte de um processo que nos pode ajudar a melhorar o nosso “eu”. Se foi de “esperança” que Jesus nos veio falar e se foi da “razão” que a obra de Kardec tratou, então tenhamos esperança no futuro e destreza para um melhor uso da razão na introdução da mudança no nosso dia-a-dia. E nestas condições poderemos dizer:

– que parvo/a tenho sido, mas parvo/a não sou, pelo que vou agir por mim, mas também pelos outros, alertando aqueles que ainda “dormem” para que trabalhem, se instruam e façam do amor a sua principal arma para a mudança.

Referências

[1] Recuperado de http://www.sirwilliam.org/index.php?option=com_content&view=article&id=197:leicausaefeito&catid=1:latest-news&Itemid=73&lang=br.

[2] Recuperado dehttp://guimaguinhas.prosaeverso.net/visualizar.php?idt=5164761.

[3] Livro Quarto, Capítulo II, item 964. Recuperado de https://livrodosespiritos.wordpress.com/.

Título: O Livro dos Espíritos

[4] Recuperado dehttp://www.oespiritismo.com.br/textos/ver.php?id1=358.

[5] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo