Provas e expiações

 

“Deus lhes impõe a encarnação com o fim de fazê-los chegar à perfeição. Para uns, é expiação; para outros, missão. Mas, para alcançarem essa perfeição, têm que sofrer todas as vicissitudes da existência corporal: nisso é que está a expiação. Visa ainda outro fim a encarnação: o de pôr o Espírito em condições de suportar a parte que lhe toca na obra da criação. Para executá-la é que, em cada mundo, toma o Espírito um instrumento, de harmonia com a matéria essencial desse mundo, a fim de aí cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. É assim que, concorrendo para a obra geral, ele próprio se adianta.”

(“O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec, questão 132) [1]

Compreendamos que, ao contrário do corpo, que encontra o seu fim na morte, o espírito (nós) tem vida eterna, pelo que o seu futuro depende do somatório de ações boas e más praticadas ao longo das suas diversas reencarnações. Por isso se diz que “A semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória” (Espírito Emmanuel). Como tal:
o estado feliz ou desgraçado de um Espírito é inerente ao seu grau de pureza ou impureza. A completa felicidade prende-se à perfeição. Toda a imperfeição é causa de sofrimento e toda a virtude é fonte de prazer” (“o Céu e o Inferno”, Allan Kardec) [2]
A sequência de nascimento e morte não acontece como culturalmente nos habituámos a aceitar e a dor que nos convoca à mudança e nos faz avançar na libertação de debilidades morais, tal como acima se refere, não é a dor física. É um sofrimento pelas contrariedades do viver pelas nossas contradições íntimas. Porém, não é fácil identificarmos as nossas imperfeições olhando-as como desafios a vencer, em vez de defeitos. É que não é a culpa que deve nortear, mas sim a busca de mais autoconhecimento. Por vezes é difícil substituir maus sentimentos por bons quando nos sentimos prejudicados, ou na carência de algo. Também não é fácil manter pensamentos bons e dignificantes em favor do Eu Maior (da alma), que compensa no futuro e em modo construtivo de um ser com mais bem-estar, em detrimento dos que nos dão gozo imediato, satisfazendo o ego pelos prazeres eminentemente físicos, ou que respondem ao orgulho, ou à vaidade. Assim, e com vista ao acesso a oportunidades de desenvolvimento íntimo (nunca de castigo), a cada nova reencarnação, o espírito ganha uma nova vida corpórea num contexto condizente com as suas necessidades, ou seja, com as suas próprias provas e expiações, sendo estas especialmente formadas para ele, não tendo estas nada de comum com as anteriores (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Allan Kardec, cap. IV). [3] Notemos que ao refletirmos nas tendências do nosso comportamento eventualmente podemos dar-nos conta que há um padrão, uma repetição de hábitos, bons ou maus, que de forma natural ou reprimida se manifestam. Se o padrão comportamental nos favorece é comum dizer-se que é um dom, mas se este assume um carácter negativo, e se o caracterizarmos adotando a terminologia do psicólogo Suíço Carl Gustav Jung, dizemos que é a sombra. A sombra é o espelho dos nossos erros morais. De facto, a vida que acontece hoje já começou há muito, entrecruzando-se com causas e efeitos de vidas sucessivas. Por isso, nunca somos vítimas do contexto e dos acontecimentos (apenas) do agora, mas também não temos de viver de culpas. Temos, isso sim, de trabalhar a renovação de comportamentos. Pensemos, por exemplo, naqueles que promovem o aborto. Dado que a partir do momento em que a vida se inicia no útero há um espírito associado, há um ser, há inteligência em germinação, então, ao se aniquilar a oportunidade do nascimento dá-se um crime contra as expetativas daquele espírito. Cada um infringe a lei da vida num dado grau de gravidade. A expiação perante tal ato é inexorável. Por seu turno, o espírito que vê frustrada a oportunidade de reencarnação também vive uma expiação. Nessa sequência, vive uma prova – a do perdão à mãe que o rejeitou. A teia de relações de culpa, ódio, amargura ou perseguição espiritual, mas também de compaixão e de perdão que se desenrolam é interminável. Casos como estes estão magistralmente registados na obra “Vidas na Encruzilhada”, de Arnaldo Costeira [4]. Nesta obra testemunha-se a lei de causa e efeito sobre a vida de diversos espíritos na forma de provas e expiações ao longo de vidas sucessivas. O ponto de partida é a rejeição de um aborto por parte de uma jovem que se vê na difícil decisão de acatar as exigências de aparência das normas sociais. Deve ela aceitar as normas impostas pelo pai, ou lutar pela vida que se impõe dentro de si? É comum encontrarmos na literatura referências ao facto de que o nosso provir será tanto mais proveitoso, “quanto melhor tivermos vivido pelo pensamento e pelo coração, quanto mais houvermos amado e sofrido.” (p. 48) [5]. De facto, viver pelo pensamento significa neste contexto usarmos a razão, sem misticismos ou dogmas. E viver pelo coração é tirar partido das escolhas emocionais, da inspiração, é beneficiar da interação espiritual. O provir, por sua vez, também depende do quanto tenhamos sabido amar e sofrer. Ao amarmos somos compassivos, solidários, indulgentes e caridosos. Contribuímos de forma inteligente para o bem. Mas ao sofrermos também melhoramos esse provir, pois expiamos, ou seja, libertamo-nos de dívidas morais contraídas no passado – isto se soubermos alterar o nosso comportamento no processo. Isto quer dizer, muitas vezes, sermos capazes de nos humildar, de vencer o orgulho e de modificarmos a nossa linha de conduta. Neste processo, de dor, ganhamos conhecimento sobre nós mesmos, pois somos confrontados com os nossos defeitos, com a nossa sombra. E é neste quadro que se instala o conflito íntimo em nós, ou seja, entre o nosso ego “doente” (se egoísta e orgulhoso) e o nosso Self – o Eu Maior (a alma, que promove a nossa ligação empática aos outros). E quanta dor pode cada um suportar? Deus não dá um fardo mais pesado (uma expiação mais difícil) do que aquela que a pessoa é capaz de moralmente suportar, pelo que nenhuma dor ultrapassa o limite de cada um. Um limite que seja equivalente ao que a pessoa será capaz de compreender sobre a necessidade de se melhorar intimamente (exemplo, ao nível de vícios, orgulho, egoísmo). No caso das dores que sentimos e que não são físicas, embora possam ter repercussões no organismo, elas existem pela necessidade de transformação que põe em confronto o ego e o Self. Normalmente é o conflito entre o “Homem velho” que há em nós (o do comportamento que deu origem à expiação que se vive) e o ser que se quer renovar. Não somos educados para compreender a vida espiritual, pelo que face ao conflito íntimo derivado das vivências anteriores do espírito e do que este plasma no subconsciente humano, tentamos fugir, fugir da crise que em nós se instala. Fugimos ao confronto que visa, afinal, nos despertar para aquilo que ainda não está bem em nós. Por isso, fugir é permanecer na condição indesejada, é não empreender a necessidade de mudança, é ficarmos sujeitos a cair nos mesmos erros da manutenção dos mesmos comportamentos. E isto sucede porque de um lado há o ego, mais imediatista e que exige conforto, segurança e saciedade dos seus desejos, e do outro está o Self (a alma), que luta pela melhoria, busca significado e transformação. [6] Muitos de nós fugimos destes confrontos íntimos pela porta dos medicamentos, que, nestes casos, podem auxiliar a restabelecer equilíbrios químicos perdidos, porém, não tratam a causa, pois ela não é física. É o próprio indivíduo que tem de querer trabalhar dentro de si, com a sua própria psique, com o âmago do seu espírito. Um outro exemplo de dor é a que surge pela doença. A doença, neste contexto, é a porta de saída, pelo corpo, do que foi sendo inculcado no corpo espiritual do indivÍduo – perispírito, que permite a aderência do espírito ao corpo, que regista toda a informação de consequências morais herdadas de vidas anteriores. Por isso, não somos doentes, estamos doentes. É sempre um estado transitório. E é pelo processo de dor, seja ela de origem moral, ou física, que o indivíduo experimenta a renovação no seu psiquismo. Por isso, o pranto da dor é também um oratório, uma oportunidade de busca. Um sinal de libertação relativamente a futuras reencarnações. É a ocasião para nos determos e refletirmos sobre a forma como temos estado a viver. Afinal, se estamos doentes é porque algo lhe deu origem, nós, que somos a causa de tudo o que nos acontece, pois somos herdeiros de nós próprios. Cada acontecimento da vida é uma proposição de prova, oportunidade de missão e vivência de expiação com vista ao aperfeiçoamento do espírito pelo cumprimento da lei de causa e efeito. Um exemplo de aplicação da lei de causa e efeito quotidiano está, por exemplo, na vivência do casal que se separa. Um é o instrumento de prova do outro. O primeiro, eventualmente, cumpre uma missão e o outro expia. E sendo a dor a forja do espírito, o perdão é a ferramenta que ajuda a desalojar a dor. O perdão ajuda a resolver as questões de orgulho no ego da pessoa ofendida e impulsiona a sua autoestima. Simultaneamente, autoriza-se a amar, a ter compaixão para com quem lhe gerou a dor. A missão que pode ser vivenciada por meio do sofrimento, é aquilo que fazemos pelo próximo. Neste caso, servimos de instrumento para que a pessoa experiencie a sua prova. Um outro exemplo é o caso do agressor, em que este é o portador da missão e o agredido o portador da prova. Perante a agressão recebida, o agredido cumpre a sua prova (ao perdoar) e expia (efeito de uma causa iniciada por si), mas sem a missão não haveria a prova, pelo que o perdão não poderia ser entregue. A entrega do perdão é o exercício que o agredido tinha de viver (de resolver em si), ao passo que o agressor vive a necessidade do seu próprio perdão, depois do arrependimento face à dor causada. Ao nos perdoarmos ganhamos uma consciência mais forte sobre o arrependimento, o que servirá de bloqueio a novas possibilidades de queda moral, de novos erros. A expiação é o pagamento, até ao último centil, da dívida moral. A expiação também permite que aquele que se sente magoado entregue o perdão e assim permute laços de ódio por laços de amor. A expiação é ainda a dívida ao Universo e não apenas aquela que se tem para com outro espírito. Quando o Cristo nos convidou a dar a outra face mostrou-nos como viver a prova. Não nos pediu que nos deixássemos agredir, mas sim que estivéssemos prontos para o outro. Ninguém nasceu ontem, pelo que todos temos muita sabedoria e coragem em nós para vencermos as nossas provas e expiações. Reflitamos então no quanto evoluímos desde o “não matarás” de Moisés, até ao “amai-vos” de Jesus. E quanto mais teremos avançado desde os tempos de Jesus e dos romanos até ao “Consolador” trazido pela Revelação Espírita (séc. XIX) – os ensinamentos de Jesus, mas sem o véu que cobria parcialmente a Verdade da vida espiritual. Para o ser humano foi longo o caminho, mas para Deus, que labora e espera por nós, foi um instante. Façamos a nossa parte laborando e sendo pacientes. Afinal, tudo está no nosso livre-arbítrio, nas escolhas que nos são postas à disposição. Nada está pré-definido e tudo na matéria é transitório para um fim maior, que é a evolução do espírito que habita a realidade material – nós.  

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos, Hellil, 2017.
Título: O Livro dos Espíritos
[2] KARDEC, Allan, O Céu e o Inferno, Hellil, 2020.
Título: O Céu e o Inferno
[3] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Hellil, 2018.
Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo
[4] COSTEIRA, Arnaldo, Vidas na Encruzilhada. 1ª Ed., Associação Social Cultural Espiritualista, 2005.
Título: Vidas na Encruzilhada
[5] DENIS, Léon, Joana D’Arc, Médium, 19ª edição, FEB, 1999.
Título: Joana D’Arc, Médium
[6] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.
Título: Em busca da iluminação interior