Mediunidade, mediunismo ou animismo?

 

No capítulo VIII de “O Livro dos Médiuns” é referido que o pensamento cria, constrói, realiza, mesmo que não concretize materialmente aquilo que mentaliza.

 

O que é a mediunidade? É a faculdade humana que permite percecionar a presença ou influência dos espíritos. E o que são os espíritos? São as almas das pessoas que já morreram, em que a morte deve ser compreendida como sendo a finitude do corpo físico, mas não do ser espiritual que habita o corpo (o ser humano). O ser espiritual continua no seu percurso de existência – todos nós. Fá-lo no plano espiritual até que volte a nascer, num novo corpo, vivendo uma nova existência.

E enquanto não reencarna mantém / pode manter a sua relação de afinidades com os seus familiares, amigos, mas também inimigos. Mediante o seu estado de evolução (moral) assim realiza as suas obras de bem ou de mal, contribuindo, ou não, para o adiantamento da humanidade. Por isso, quando criamos, na verdade não somos autores, mas sim coautores.

Assim, há quem percecione a presença ou influência dos espíritos (não encarnados). A essa faculdade deu-se o nome de mediunidade, que deriva do termo médium – aquele que faz a ponte entre uma e outra realidade (a terrena e a espiritual). A mediunidade quando se manifesta no indivíduo de forma mais ostensiva pode condicionar o seu bem-estar. Importa a estes em particular e a todos em geral, compreender o que é, como a dominar e como fazer da mediunidade (e do ser sensível que todos somos, ainda que em graus diferentes mediante o esforço de cada um) um instrumento de bem em benefício dos outros – não de si mesmo no sentido egoísta do conceito, ou perverso se realizado no sentido do comércio da mediunidade.

A mediunidade não é algo de novo, e não existe apenas desde a codificação da doutrina espírita, ou seja, desde os trabalhos de Allan Kardec. A comunicação com os espíritos já é conhecida e praticada em diferentes povos, de diferentes crenças, desde há muitos séculos. São conhecidos relatos em que os espíritos “exerciam a sua ação de maneira mais ostensiva, pela inspiração, pela mediunidade inconsciente, auditiva ou de incorporação.”

Por exemplo, São João alertou-nos sobre a comunicabilidade dos espíritos da seguinte forma: “Meus bem-amados, não acrediteis em todos os Espíritos, mas provai se os Espíritos são de Deus; porque muitos falsos profetas se têm levantado no mundo”. Pois, a comunicação acontece desde tempos imemoriais, mas nem sempre de forma esclarecida, ou com objetivos dignificantes. Tudo depende dos interlocutores e da intenção posta no ato.

No livro “Paulo e Estevão” [1] pode ler-se uma interessante passagem em que se relatam acontecimentos mediúnicos vivenciados pelos apóstolos em Antioquia, na época de Barnabé, nos primeiros anos do cristianismo, depois da morte de Jesus:

“A união de pensamentos em torno de um só objetivo dava ensejo a formosas manifestações de espiritualidade. Em noites determinadas, havia fenómenos de “vozes diretas””.

Como saber se somos médiuns se temos mediunidade?

Respondemos recorrendo à literatura:

Todas as pessoas que sentem a influência dos Espíritos, em qualquer grau é médium” [2, cap. XIV]. [2]

Médiuns são pessoas aptas a sentir a influência dos Espíritos e a transmitir os pensamentos destes (…) não é uma faculdade exclusiva, é inerente ao homem” [3, 1ª parte, cap.2]. [idem]

Porém, é importante distinguir mediunidade de mediunismo e estes de animismo (ou autossugestão) [4].

A mediunidade é um instrumento que se desenvolve de forma natural e gradativa, pelo que não pode ser precipitado ou acelerado pela vontade do indivíduo.

O mediunismo é uma expressão criada pelo Espírito Emmanuel que “designa as formas primitivas de mediunidade que fundamentam as crenças e as religiões primitivas. A diferença está na consciencialização do problema mediúnico”. Neste sentido, “a mediunidade é o mediunismo desenvolvido, racionalizado e submetido a reflexão filosófica e religiosa e a pesquisas científicas necessárias ao esclarecimento dos fenómenos, a sua natureza e as suas leis” (“Mediunidade”, Herculano Pires) [5].

Por sua vez, o animismo é resultado da autossugestão do indivíduo. As ideias que por este se possam estar a manifestar são suas e não do espírito que que por este se poderia estar a manifestar.

Ivonne do Amaral Pereira alerta que “o imoderado desejo de ser médium vai às vezes ao ponto de se exercitar a vidência” [6, p. 132]. A autora comenta que a vontade de alguns em serem médiuns pode gerar a autossugestão fazendo-os crer que veem coisas ou que vivenciam outros fenómenos. Esta vontade pode conduzir o indivíduo aos chamados clichês mentais, ou seja, à ideoplastia (ideia plasmada na mente pela vontade). Refere ainda que o médium também não é alguém com poderes especiais, pelo que devemos acautelar qualquer tendência para fanatizarmos a relação com a mediunidade ou para idolatrarmos seja quem for devido à sua mediunidade.

É de salientar que aquilo que sucede a indivíduos equivocados quanto à sua missão de vida, por via da sua mediunidade, também pode suceder a quem é médium numa casa espírita. Sobre isto, Francisco Cândido Xavier, no livro “O Consolador” [7], refere:

“O primeiro inimigo do médium reside dentro dele mesmo. Frequentemente é o personalismo, é a ambição, a ignorância ou a rebeldia no voluntário desconhecimento dos seus deveres à luz do Evangelho, fatores de inferioridade moral que, não raro, o conduzem à invigilância, à leviandade e à confusão dos campos improdutivos.”

É importante vigiar o fenómeno, ter consciência de que não há médiuns extraordinários e que não existem eleitos na mediunidade. Os médiuns são apenas instrumentos, ora bons, ora maus, das forças invisíveis do Além (espíritos não reencarnados), mediante a forma como cada um conduz o seu quotidiano.

O espírito Emmanuel refere sobre o despertar da mediunidade no indivíduo que:

“Os sintomas variam, e dependem do tipo de mediunidade. Mas a irritação, a sonolência inexplicável, as dores sem diagnóstico definido, o mau humor e o choro sem motivo, podem indiciar haver necessidade de esclarecimento e de estudo” (“Plantão de Respostas”, Francisco Cândido Xavier, orientando pelo espírito Emmanuel) [8].

Kardec ao explicar sobre a continuidade da vida a partir do que lhe foi ditado pelos espíritos (ver “O Livro dos Espíritos”) expõe os fatores científicos que suportam a mediunidade (ver “O Livros dos Médiuns”) [2]. Torna-se claro que a mediunidade é natural à vida e não uma exceção às Leis de Deus (da vida). É um grau de sensibilidade que requer compromisso e responsabilidade para o seu portador, ainda que todos possam ser agentes de ajuda solidária. O que difere entre uns e outros é a forma como essa mediunidade se expressa (sensibilidade para percecionar e a realidade espiritual) e como cada um a põe em ação.

A educação mediúnica é expressa pela primazia do elo entre o sensível (glândula pineal da pessoa — do médium) e o guia espiritual do médium (que auxilia a pessoa nesse desenvolvimento). Desta forma espera-se controlar melhor as presenças dos chamados espíritos sofredores, ignorantes ou obsessores, os quais se servem do campo mental projetado pelo próprio médium, no sentido de o perturbar [9].

Assim, é muito relevante manter a sintonia de pensamentos com o guia espiritual (que todos temos) e o regramento dos comportamentos e pensamentos para que haja um bom desempenho da mediunidade, mas também para a manutenção do bem-estar do médium. Esta forma de vivência proporciona um quotidiano mais liberto da angústia, nomeadamente da gerada pela dúvida, que é atractora de espíritos de baixa índole moral.

Em particular, na fase de educação mediúnica é normal o médium sentir alguma inconstância psicológica, pois “a mediunidade, propiciando a interferência dos desencarnados na vida humana, a princípio gera estados peculiares, tanto na área da emotividade, como nos estados fisiológicos. Porque mais facilmente se registarem as presenças de seres negativos ou perniciosos, a irradiação das suas energias produz esses estados anómalos, desagradáveis, que podem ser confundidos com problemas patológicos, ou outros” [10].

Apesar da vasta literatura, a mediunidade ainda não está totalmente compreendida. A mediunidade deve ser observada com atenção para evitar o engano ou o fascínio. Se a mediunidade faz parte das leis da vida, há nela algo de natural, pelo que a ausência da sua manifestação, também deve ser aceite com normalidade. Se nem todos nascem sujeitos às mesmas provas ou com iguais atributos, então o despertar desse nível de sensibilidade (da mediunidade) também não será igual entre todos.

Viver a mediunidade é compreender que não lidamos com um mundo de vivos e de mortos, mas sim com a interceção de duas dimensões, a espiritual e a terrena, ainda que cada uma destas corresponda a um tempo e espaço distintos. Nessa junção tempo-espacial, uns e outros influenciam-se mutuamente, sendo a mediunidade o instrumento de permeio pelo qual espíritos encarnados percecionam e/ou comunicam com espíritos desencarnados. Nesta intermediação é a glândula pineal o elemento físico que permite a comunicação estabelecida pelo pensamento.

Um exemplo deste permeio tempo-espaço são as mensagens de Inês de Castro psicografadas por Francisco Cândido Xavier e depois vertidas para a obra de Caio Ramacciotti [11], relatando os factos do romance medieval e reencarnações subsequentes. Uma obra que revela a intervenção do Espírito da Rainha Santa Isabel, e, posteriormente, da própria Inês de Castro na vida terrena de D. Pedro I e de D. Afonso IV.   

De forma simplificada, o grau de desenvolvimento da mediunidade equivale ao grau de sensibilidade. Como todos somos sensíveis, todos temos mediunidade. No entanto, para que esta evolua temos que a compreender e trabalhar a diversos níveis, nomeadamente ao nível intelectual e moral, e da sua associação pelo uso da razão. Neste sentido, sugerimos que se comece pela leitura e estudo das obras da Codificação Espírita de Allan Kardec.

Sugere-se ainda a vigilância dos pensamentos e a oração, meditação, ou silenciamento do ruído mental visando-se a sintonia com o guia espiritual (tal como já referido, todos temos um). Sugere-se ainda o trabalhar do autoconhecimento e do aprimoramento de conduta. Para nos inspirarmos ao alinhamento entre comportamento e compreensão da realidade espiritual sugerimos a possibilidade de se conhecer um pouco do ser humano extraordinário que foi o médium brasileiro Francisco Cândido Xavier (Chico Xavier) (1910-2002). Mas também, a obra, o testemunho de vida e o invulgar conhecimento do médium brasileiro Divaldo Pereira Franco.

É ainda de destaque o trabalho do Coronel Arnaldo Costeira em prol do movimento Espírita Português e do consolo espiritual e apoio social perpetuado a partir da Associação Social e Espiritualista de Viseu, bem como de diversas obras por si levadas ao prelo, nomeadamente as cinco obras de codificação espírita na língua de Camões.

A mediunidade não deve ser usada para satisfazer curiosidades ou para benefícios pessoais, mas sim para promover, de forma esclarecida, a ajuda e o consolo ao próximo. É um instrumento de caridade pelo qual se exerce a mediação de Jesus em favor dos que se encontram carentes de auxílio, material e moral, ou mesmo de uma mensagem de esperança. Afinal, Jesus pregava de preferência aos pecadores dizendo que era preciso dar àqueles que não têm (“Livro dos Médiuns”, XVII: 220-14).

 

Referências

[1] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo espírito Emmanuel, Paulo e Estevão. FEB, 2004. (*)

[2] KARDEC, Allan, O Livro dos Médiuns. Edições Hellil.

Título: O Livro dos Médiuns

[3] KARDEC, Allan, Obras Póstumas. FEB.

Título: Obras póstumas

[4] Sobre animismo (consciente ou inconsciente), recuperado de https://pt.slideshare.net/anaclaudialeal/animismo-9761900.

[5] Recuperado de https://pt.slideshare.net/livroespirita/13-herculano-pires-mediunidade.

[6] PEREIRA, Ivonne do Amaral, À Luz do Consolador. FEB, 1998.

Título: À luz do consolador

[7] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo espírito Emmanuel, O Consolador. 1ª Edição, 1940, Recuperado de http://bvespirita.com/O%20Consolador%20(psicografia%20Chico%20Xavier%20-%20espirito%20Emmanuel).pdf.

[8] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo espírito Emmanuel, Plantão de Respostas, CEU, 1971.

[9] COSTEIRA, Arnaldo, Curso Básico de Espiritismo. 1ª Ed., Edições Hellil.

[10] FRANCO, Divaldo Pereira, orientado pelo Espírito Vianna de Carvalho, Médiuns e Mediunidades. 2. Ed. Niterói [RJ]: Arte e Cultura, 1991, p. 61 (Educação das forças mediúnicas).

[11] Ramaccioti, Caio, psicografia de Francisco Cândido Xavier, Mensagens de Inês de Castro, 2011, GEEM.

Título: Mensagens de Inês de Castro
 

(*) Este [1] livro foi transmitido a Chico Xavier pelo próprio Paulo de Tarso valendo-se da intermediação de Emmanuel (atendendo à grande distância psíquica entre Chico e Paulo). A obra trata a vida de Paulo de Tarso, também conhecido por apóstolo dos gentios, portador de alma repleta de conflitos filosóficos, que, na opinião de Herculano Pires, representa a transição do padrão de comportamento típico daquela época (judaica ou romana) para o modo de ser cristão. Responsável directo pela morte de Estevão, conhecido como o primeiro mártir do Cristianismo, Saulo de Tarso ao ver a figura de Jesus, naquele episódio às portas de Damasco, cega, para depois recuperar a visão por intermédio de Ananias e assim, finalmente, se curvar diante do irresistível apelo ao amor e à caridade da mensagem cristã. Neste livro Emmanuel descreve as viagens de Paulo que percorreu todo o Mediterrâneo fundando igrejas e distribuindo as suas famosas epístolas, as quais serviriam de orientação aos primeiros núcleos cristãos.

Este livro completa um ciclo de obras que tem como cenário o Mundo Romano, orientadas pelo espírito Emmanuel e psicografadas por Francisco Cândido Xavier (Chico Xavier).

Ver ainda considerações de Emmanuel sobre Paulo de Tarso, recuperado de http://www.oespiritismo.com.br/textos/ver.php?id1=311

Obra completa, Paulo e Estevão, recuperado de http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/chicoxavier/pauloeestevao.pdf.