Quem olha por nós

 

“No tempo em que vivemos ninguém fica surpreendido se um homem der diariamente atenção ao corpo, mas as pessoas ficariam escandalizadas se ele desse a mesma atenção à alma” (Aleksandr Solzhenitsyn, escritor russo).

No livro “O Céu e o Inferno” Allan Kardec transcreve o testemunho de inúmeras comunicações de espíritos desencarnados à época (séc. XIX). São testemunhos que nos alertam para as diferenças de despertar no lado de lá da vida em função da forma como se viveu, moralmente, no lado de cá, na Terra, mas também sobre as ligações que posteriormente se estabelecem entre os que partem e os que ficam.

Num desses testemunhos Kardec dá-nos a conhecer um diálogo entre o espírito de um médico russo, proeminente à sua época, e um médium pelo qual o espírito sentiu afinidade após ter despertado no outro lado da vida (no plano espiritual), ainda que estes dois nunca se tivessem conhecido na vida terrena.

Diz o espírito:

“Certo, na Terra tendes amigos, os quais, compartilhando das vossas angústias, talvez já vos tenham salvo.” (…) “Pois bem: ficai certo de que no Espaço também podeis ter amigos, úteis e prestantes.” (Parte 2, cap. II, p. 234).

Deste diálogo retemos que para lá da ajuda que julgamos vir do nosso Guia protetor (espiritual), há outras ajudas que igualmente podem nos chegar por uma questão de afinidade. Uma ajuda que será tanto mais efetiva quanto mais elevada seja a condição moral do espírito, a par do merecimento e comportamento ético e moral da pessoa. Mas o inverso também sucede, sendo que neste caso é a baixa condição moral do par pessoa e espírito que implica a proximidade entre estes.

Nunca estamos sós! Vastas vezes o nosso ânimo é estimulado por espíritos amigos e abnegados que nos inspiram à descoberta, que impulsionam à participação para que a evolução do todo social e humano suceda. São eles que apoiam por via da intuição a aceder à informação que reside em nós, no nosso inconsciente, para resolvermos os nossos desafios, ou mesmo para sabermos evitar problemas. Razões mais do que suficientes para sermos humildes, nomeadamente quando vencemos etapas e nos achamos cheios de glória – pois, afinal, nunca estivemos sós, não alcançamos nada sem apoio. E mesmo enquanto não vencemos esses protetores estão lá, como os melhor aliados.

É na sintonia dos que lá do alto olham por nós que cultivamos a paciência e a fé raciocinada, a par da resiliência. E quando o caminho se fecha, talvez ainda sejam eles a burilar a sorte para que se evite o desastre que podia estar eminente e que não víamos. A aprendizagem que nos pode ajudar a fazer as escolhas do caminho pode estar na prática da meditação, da oração, da sintonia elevada e serena.

Orar é dialogar. Este diálogo deve ser um exercício consciente de gratidão pelo que se tem, não uma lamúria em torno do que se queria ter. Agradecer pelo que alcançamos, agradecer as forças, agradecer o entendimento já almejado. E quando pedirmos, que seja para termos meios, em nós, para conseguimos compreender mais, e resignar face às tormentas do caminho, no sentido de retirarmos da dor os ensinamentos que por ela nos chegam (porque nos humildamos).

“Desanimar, nunca; caminhar sempre, apesar dos pedregulhos. Tomai-me por apoio nos momentos de desânimo.(idem)

Outras vezes sucede que nos falta dimensionar devidamente o nosso ego, ou seja, o nosso sentido, mais ou menos, egoístico de viver, centrando-nos apenas nos nossos desejos. É muito importante aprendermos a cuidar do nosso Self, de nos conhecermos como seres espirituais que somos, de alcançarmos o outro que de nós possa precisar [1]. Para isso é importante cultivar autoconhecimento que nos ajude a identificar e aceitar as nossas debilidades. Assim poderemos tratar de as corrigir, mas também, de aprendermos a aceitar as dos outros, em vez de criticar.

Por vezes achamo-nos fortes e sem mácula, ou cheios de culpa. Mas se compreendermos que somos seres em evolução, aceitaremos as nossas falhas e implementaremos esforços para nos melhorarmos, com responsabilidade. Então, não mais daremos abrigo à angústia, à culpa e ao medo. Eduquemos, pois, em nós, os bons sentimentos, a compaixão, a caridade e a gratidão. Compaixão por quem sofre ou ofende. Caridade com quem precisa de afeto, do nosso tempo, de algo. Gratidão por quem sai do seu caminho para nos ajudar, mesmo que seja para nos fazer uma chamada de atenção.

Acima de tudo não ficar irado. Escutar mais do que dizer, pois se escutarmos aprendemos. Se somente falarmos desperdiçamos a oportunidade da partilha. E quando é a ira que toma conta de nós, perdemos o domínio da razão. Quando a ira toma o lugar do amor somos conduzidos à perda. Sim, temos falhas e aqueles que do outro lado da vida velam por nós sabem-no, pois também passaram pelas vicissitudes da vida terrena e das paixões que nos põe sobre esforço moral.

Os espíritos sabem o quanto é difícil vencer os desafios terrenos, por isso aqueles que velam por nós, além de terem o entendimento dos ensinamentos de Jesus, compreendem e aceitam as nossas debilidades morais Porém, trabalham a par de nós, na senda da evolução, pelo que também nós temos de nos esforçar. Não podemos deixar tudo na “mão” de quem se propôs abnegadamente a nos ajudar.

E é neste contexto de aprendizagem da mensagem da Boa Nova e do esforço de mudança íntima que se destaca a importância da ação do trabalhador Espírita sincero, tal como referido no diálogo do médico russo:

“como Espírito, vos vi do Espiritismo adepto sincero e bom médium. E como dentre tantos que aí deixei fostes vós que vi primeiramente, logo me propus contribuir para o vosso progresso. O proveito não é apenas vosso, mas também dos que deveis instruir no conhecimento da verdade.” (idem).

A verdade a que o Espírito faz referência é relativa aos ensinamentos de Jesus sobre a continuidade da vida, pois somos seres espirituais. Morre o corpo, termina essa existência, mas o ser que anima o corpo, o espírito, perdura.

Ser-se trabalhador na Casa Espírita não é sinónimo de perfeição, mas sim de maior responsabilidade face ao conhecimento adquirido sobre a referida verdade:

“por certo que bem longe estais da perfeição. Não obstante o vosso ardor na prática das sãs doutrinas; o cuidado em manter a fé dos que vos ouvem; em aconselhar a caridade, a bondade e a benevolência, mesmo para os que convosco mal se conduzem; a resistência aos instintos de cólera, que aliás facilmente poderíeis descarregar nos que vos afligem, por ignorantes das vossas intenções; tudo isso atenua a maldade que ainda possuís. Convém que o diga: o perdão das ofensas é, de tantas, uma das mais poderosas atenuantes do mal. Deus vos cumula de graças pela faculdade que vos concedeu, e que deveis desenvolver pelo esforço próprio, a fim de cooperardes na salvação do próximo.” (idem)

O médium, o espírita, o indivíduo que se voluntaria, que dá o seu tempo pelo outro, que ensina, que partilha ou dá atenção, ou testemunho adequado a quem precisa de aplacar a dor, está a agir no mais elevado grau de inteligência que consubstancia a caridade. Aquela que foi explicada por Jesus como sendo a base da vida – o amor para com o próximo, e a partir do qual se constrói a rede, social e espiritual, que nos liga a Deus. Não descuremos a nossa parte. Sejamos cada vez mais inteligentes.

Referências

[1] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Refletindo a Alma: A Psicologia Espírita de Joanna de Ângelis, LEAL, 4ª edição, 2016.

Título: Refletindo a Alma, a Psicologia de Joanna de Ângelis