Livre-arbítrio

 

Martinho Lutero, fundador da igreja protestante (séc. XV) disse: “É portanto fundamentalmente necessário e saudável que os cristãos saibam que Deus (…) prevê, projecta e faz todas as coisas conforme Sua própria imutável, eterna e infalível vontade. Esta bomba derruba de uma vez por todas o “livre-arbítrio” destruindo-o completamente”. Estará esta ideia totalmente correta?

O que disse Martinho Lutero sobre o livre-arbítrio resulta da sua interpretação sobre os propósitos de Deus para a evolução do ser humano. Para Lutero o indivíduo não é mais do que uma vontade externa a si mesmo, ou seja, somos essencialmente um instrumento da vontade de Deus.

Seguindo este entendimento poderíamos afirmar que o ser humano é como uma marioneta ao cuidado e determinismo de Deus, pelo que as Suas leis morais não se aplicariam, tal como a lei de causa e efeito.

Por este prisma reinaria a desresponsabilização do ser humano face aos seus atos, e Deus apenas aguardaria pelas suas falhas, no sentido de os punir, e pelos seus méritos para os premiar. Tudo seria determinado por Deus. Mais, não havendo livre-arbítrio o Homem não tomaria qualquer decisão, pois Deus as assumiria. Porém, tudo isto conduz a uma profunda incoerência. Se fosse Deus a tomar as nossas decisões, nunca falharíamos, pois, sendo Deus perfeito, também seríamos impelidos a realizar coisas perfeitas – o que está longe de acontecer.

Por sua vez, se interpretarmos a vida a partir da perspetiva do espírito que habita um corpo físico, ou seja, do facto de sermos um corpo e uma alma, então não basta almejar uma existência exclusivamente material. As nossas escolhas moldam o nosso provir, na vida presente, mas também depois da morte do corpo. Afinal, a vida do espírito é o garante da nossa individualidade e o resultado no nosso esforço de evolução – eterna. E sendo Deus misericordioso, justo e bom, não permitiria que diferentes pessoas tivessem diferentes sortes. Todos seríamos felizes e teríamos as mesmas coisas e iguais oportunidades desde a nascença. Todavia, também não é assim que acontece.

A lei de causa e efeito mostra que nada sucede de forma predestinada ou aleatória. Todo o efeito tem uma causa e ela tem origem nas escolhas do indivíduo. Se o livre-arbítrio fosse limitado por algo exterior à sua vontade, o indivíduo não poderia assumir toda a responsabilidade relativa aos seus atos, nem mesmo aprender com estes. Desconheceria ainda como distinguir entre os resultados fruto do seu próprio esforço e os alcançados pela vontade expressa de Deus. Se tudo fosse atribuído a Deus, o ser humano desistiria de se esforçar para vencer as suas provas e expiações no sentido de progredir.

O indivíduo é quem comanda a sua vontade, ainda que sujeito às ditas paixões ou tentações da vida no corpo, mas também às sugestões – via pensamento – oriundas do plano espiritual, bem como às relativas ao contexto em que vive. É o indivíduo que gere as oportunidades de aprendizagem que o conduzem ao bem ou ao mal mediante as suas próprias escolhas. Não há determinismo, mas sim leis morais que regem a forma como se processa a evolução do espírito na direção do ideal de amor entre todos.

Assim, se nos sentirmos desfocados e sem objetivos lembremos que somos donos do nosso caminho, mas face a este, não é um problema temermos as suas agruras. Sempre podemos humildar-nos e pedir ajuda. Uma oração é uma conversa com efeitos concretos, pois há sempre quem a escute. E se a vida nos corre bem, façamo-la igualmente, essa oração, pois devemos agradecer a intuição, a inspiração, a ideia que nos ajudou às realizações. Nunca estamos sós, pelo que devemos procurar a melhor sintonia para os nossos pensamentos. Comecemos pelos nossos sentimentos, pelo libertar do nosso egoísmo e do orgulho que nos ofusca. Não fiquemos parados a questionar-nos sem agir. Não nos detenhamos na dúvida paralisante e menos ainda no derrotismo. Não sejamos a “personagem” deste verso de Fernando Pessoa, por Álvaro de Campos [1]:

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim?

Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente,

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier,

Ou tiver que vir, ou não venha.”

Não sejamos aquele que se sente mal na sua própria pele, ou que se sente desenquadrado do seu lugar ou tempo. Afinal, o objetivo é viver as nossas provas, por elas aprender e assim evoluir. Sejamos ativos na nossa evolução e não apenas espetadores na vida. Sejamos uma alavanca atenta e carinhosa na vida de outros.

Tal como refere o ditado latino “Homo Hominis Lupus – o Homem é o lobo de do Homem”. Quer isto dizer que é no interior de nós mesmos que se encontram os nossos mais temíveis algozes [2]. E de facto, já o filósofo Nietzsche dizia que vivemos um conflito entre uma moral particular reprimida e a vontade de potencia que quer expandir-se. É o Self a querer impulsionar o ser, a promover a sua individuação, porém, enquanto o indivíduo não aprender a reconhecer e depois a lidar com a sua sombra, esbarra no domínio das vontades imediatistas do ego. O indivíduo precisa de confrontar-se a este nível, no seu íntimo, com a sua sombra– com o medo de lidar com os seus defeitos, mas também de reconhecer as suas virtudes (sem exacerbar a vaidade). Enquanto não o fizer vive prisioneiro da culpa que em si vive instalada. E neste contexto acabamos por ter uma vida restrita, que apenas atende às necessidades do ego, acabam estas por dominar as nossas atitudes. [idem]

Procuremos, pois, fazer tal como disse o espírito Emmanuel: “Segue sempre para diante e não temas. Deus vigia. Sim, vigia, ainda que não estejamos preparados para compreender como é sentirmos Deus”. Sim, faltar-nos-á um sentido (“O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec, questão 10) para que possamos alcançar essa compreensão. Por isso não percamos de vista que o sentido é o amor e que somos nós quem escolhe as formas de o alcançar, que é o propósito a dar aos nossos dias.

 

Referências

[1] Recuperado de http://www.citador.pt/poemas/tabacaria-alvaro-de-camposbrbheteronimo-de-fernando-pessoa.

[2] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.