O espírito e a mente

 

“As ciências comuns baseiam-se nas propriedades da matéria, que se pode experimentar e manipular livremente; os fenómenos espíritas assentam na acção de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não dependerem dos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições especiais e outro ponto de partida; querer submetê-las aos procedimentos normais de investigação é estabelecer analogias que não existem.”

(O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, Introdução, item VII)

A descrença e incompreensão da vida espiritual parece ter conduzido os religiosos à intolerância e os cientistas à incredulidade. O resultado é o fatiar da realidade pela separação entre factos materiais e espirituais. Neste sentido, a comunidade científica continua a focar a sua atenção no estudo da realidade material e a negligenciar a existência de uma causa primeira e inteligente para todas as coisas, Deus, bem como o efeito das leis morais sobre a realidade tangente da vida. 

Por seu turno, alguns religiosos insistem na ideia do temor a Deus, e outros na confusão entre a existência una de Deus e Jesus, ou nos milagres, ou mesmo no Deus vingativo contra aqueles que professam coisas diferentes. Afinal todos ignoram o uso da razão face às provas de uma realidade que não pode excluir a vida espiritual, que inclui o fenómeno (natural) da mediunidade e que impossibilita a negação da evolução do conhecimento materializado na ciência. 

Na verdade, se tudo é obra de Deus, Ele não iria colocar os seres da sua criação em conflito atribuindo a verdade a uns e o erro a outros. Para isto não os teria criado, caso contrário não seria o Deus de amor que sabemos ser. Somos nós que não entendemos que a realidade é una e sem fronteiras e que o efeito da realidade divina e dos espíritos é inalienável. Afinal, a incompatibilidade que se julga (ou julgou) existir entre essas duas ordens de ideias provém de uma observação defeituosa e de excesso de exclusivismo, tanto de um lado, como do outro. Daí um conflito que deu origem à incredulidade e à intolerância (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, cap. I, item 8). 

O Homem fazendo uso do seu livre arbítrio e da própria vontade polariza a sua visão e por ela manifesta um comportamento. Não é Deus que lhe atribui esse comportamento, pois a vida não assenta no determinismo. O que Deus fez foi dar-nos as condições de evolução e as leis que a regem. A decisão que determina o ritmo dessa evolução e das disseções que se conhecem é individual e assenta no uso fruto do livre-arbítrio de cada um. 

O pesquisador e psiquiatra António Damásio em “O Livro da Consciência” [1] refere que é o cérebro que desenvolve o «eu» da pessoa. Para este investigador os impulsos nervosos são a fonte para o aparecimento do «eu», e, portanto, da consciência. Numa obra anterior, em “O Erro de Descartes” [2], Damásio baseia-se em Espinosa para justificar as suas ideias. Espinosa, ao contrário de Platão e Aristóteles, dizia que a ideia da supremacia da alma (a mente) sobre o corpo era um pretexto para se julgarem as paixões e o corpo. Estes, como coisas que tiram a natureza do seu curso natural desequilibrando a alma. Por conseguinte, pensamento e extensão seriam atributos de uma única e mesma coisa, pelo que mente e corpo seriam um só: modificações de uma mesma substância que se mostra ora como mental, ora como material. [3]. 

Platão, por sua vez, definia mente, ou alma [Psykhé] como “o piloto do navio”, dando preferência para a alma que devia guiar o corpo. Aristóteles definia o corpo como órganon da alma, ou seja, como um mero instrumento para o seu aperfeiçoamento, dando preferência e supremacia a uma relativamente à outra. [idem]

Neste sentido, e em linha com Espinosa, Damásio argumenta que a investigação sobre emoções pode ajudar a tratar as doenças do espírito. Porém, para o investigador, o espírito é o resultado da criação de imagens mentais. Segundo o investigador, os neurónios, organizados em circuitos, comunicam por meio de reações eletroquímicas, sendo o padrão, ou o desenho dos circuitos, o que permite a construção de todas as imagens. E isso valerá tanto para o que se passa no mundo exterior, por exemplo pelas visões ou sons, como para imagens interiores, nomeadamente as produzidas e transformadas por uma emoção. Segundo Damásio, estas são as imagens que constituem o designado espírito humano. Porém, uma mudança de perspetiva permite observar a mesma realidade de forma totalmente diferente. 

A física americana residente em Oxford (Inglaterra) Danah Zohar no seu livro “O ser Quântico” [4] propõe uma abordagem totalmente diferente de Damásio. A investigadora aplica os princípios da física quântica para explicar de forma pragmática a existência da consciência. Defende que esta pode ser descrita como uma sobreposição de identidades e memórias criadas e armazenadas por cada indivíduo, pelo que tem um papel ativo na cognição. Em oposição à concepção de Damásio, o pensamento é mais do que um processo meramente centrado em funções neuronais. 

A autora lança uma hipótese relevante sobre o que é a consciência e sobre o facto de sermos mais do que simples átomos, matéria. Apresenta ainda uma explicação sobre a relação entre a individualidade de cada um e a sua possível relação com um todo, tal como referia o psicólogo e psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, no âmbito do conceito de inconsciente coletivo. 

Neste sentido, e concordando com Zohar, temos uma causa, a vontade, resultante do livre-arbítrio, bem como o seu efeito, no cérebro, e, os respetivos processos neuronais e sinapses. Temos ainda a física quântica como instrumento conceptual que poderá vir a formular matematicamente o facto de sermos uma sobreposição de identidades. Identidades relativas a saberes adquiridos em diversas reencarnações (depositados no inconsciente). 

Temos a ciência, que ao associar a moderna psicologia à física permite explorar novas abordagens para explicar as coisas da alma, bem como a forma como esta age sobre a matéria. Temos informação e prova suficiente para compreender a forma como o espírito e o corpo são unos no tempo e no espaço e indissociáveis da vida na Terra, mas sujeitos às consequências das escolhas do tempo passado, com reflexo no indivíduo do presente pela ponderação da lei de causa e efeito.  

Hernâni Guimarães de Andrade na sua obra o “PSI Quântico” vai mais longe ao lançar hipóteses sobre o uso da física quântica como instrumento que pode permitir a compreensão e o desenho do modelo atómico que justifica a ligação entre a realidade do mundo das partículas materiais e quânticas à quarta dimensão, que é a realidade subjacente ao plano espiritual, tal com o autor a designa. Todavia, os instrumentos que contribuem para a sistematização desta compreensão ainda não estão totalmente dominados. Novas hipóteses, em particular aquelas que vão para lá do formalismo cartesiano da ciência, indicam que não há as “coisas” da religião e as “coisas” da ciência, mas sim uma realidade única. 

A realidade reúne a existência espiritual e material e subentende que há uma causa primeira: Deus. Nessa perspetiva a ação inteligente é fruto de uma vontade igualmente inteligente, a qual concretiza um efeito. Nesse processo vivem-se as provas e expiações que permitem a concretização dos exercícios que ajudam à evolução do espírito. Cada um assume as suas responsabilidades face às escolhas feitas pelo seu livre-arbítrio. Em síntese, são as leis morais em articulação com as leis da matéria que regem a interacção entre a matéria e o espírito, executando-se a vontade de Deus. E deveria ser esta a nova abordagem impulsionadora da ciência para que esta explicasse o ser humano no seu todo: corpo e alma.

Parece-nos inquestionável que a convergência de estudos sobre a realidade material e espiritual definirá novos campos de investigação em vários domínios da ciência, mas também um novo papel para os religiosos das diferentes religiões. Entre estes estarão aqueles que a partir do estudo do espiritismo fomentarão a mudança. Eventualmente nesse dia a ciência terá menos fronteiras e os religiosos serão atores de domínios específicos do saber. Cada um fará as suas escolhas, pois têm o livre-arbítrio para decidir se participam na mudança, ou se vão manter a inércia que ancorou uns ao preconceito e outros ao dogma. 

 

Referências

[1] DAMÁSO, António, O Livro da Consciência. Círculo de Leitores, 2010.

[2] DAMÁSO, António, O Erro de Descartes. Círculo de Leitores, 1994.

[3] Recuperado de https://razaoinadequada.com/2012/12/29/esboco-para-uma-contra-historia-da-psicologia-espinosa/.

[4] ZOHAR, Danah, Ser Quântico. Best Seller, 1990.