O perdão

 

“Felizes são os que possuem a fortuna do perdão para a distender largamente, sem parcimónia. O perdoado é alguém em débito; o que perdoou é espírito em lucro.”

(“Florações Evangélicas”, Divaldo Franco, pelo Espírito de Joanna de Ângelis) [1]

A sociedade pede justiça face ao mal realizado e Jesus diz que se perdoe aos inimigos. Como proceder? A resposta é simples: A César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Deixemos que a justiça terrena faça o seu curso, mas aprendamos a perdoar os causadores da dor atendendo às leis de Deus. Na verdade, quem assim fizer é o primeiro beneficiado, pois, além de não se nivelar ao erro do adversário, liberta as suas tensões tornando-se ainda mais livre. Isto não é apenas um ensinamento moral, por também é um procedimento científico de terapêutica infalível. Saber perdoar é saber libertar-se. É ter instrumentos que asseguram saúde física, psíquica e equilíbrio moral.

Mas onde está o nosso inimigo?

Está naquele que nos fere fisicamente e moralmente, mas também naquele que nos usurpa bens, paz, conforto e segurança. Está por vezes na desavença familiar, na quebra de uma amizade, no fim de uma relação. Está em nós e na gestão dos nossos próprios conflitos, com outros, ou connosco mesmo.

O espírito Emmanuel refere: “Esquece injúrias e ofensas. Não lastimes o passado. Não censures a ninguém. Segue sempre para diante e não temas. Deus vigia”. Perdoar também é aceitar que somos seres em construção, impreparados, pelo que falhamos. Não há uns melhores que outros de forma absoluta, nem aquele que perdoa e avança sem hesitar indo ao encontro imediato da sua paz.

Paulo de Tarso (S. Paulo) referia que todos os que tentam renovar-se e melhorar-se interiormente e de forma mais profunda passam por um tempo de maior inquietude e insegurança íntima, pois destruíram a casa antiga sem ainda terem uma nova. Porém, sendo-se humilde e tendo uma fé racionalizada, saber-se-á usar o perdão e a caridade melhorando a própria experiência de vida. Viver é aprender.

O poeta alemão Bertolt Brecht, nascido em 1898, sublinhou assim a importância do saber e da aprendizagem: “Aprende, homem do asilo! Aprende, homem na prisão! Aprende, mulher na cozinha! Aprende, sexagenária! Tens de tomar a chefia! Frequenta a escola, homem sem casa! Arranja saber, homem com frio! Faminto, pega no livro: é uma arma. Tens de tomar a chefia“.

A chefia está na tomada de consciência do que somos e que sentido há na vida, tanto se vista pela ótica do corpo, como para lá dele, pela alma. A chefia está no questionamento sobre nós e sobre o nosso comportamento, e nunca na crítica ou no que observamos nos outros. É um exercício que cabe a cada um, pelo que temos de aprender a ganhar autoconhecimento e ir em busca dessa informação contida no inconsciente, seja a contida na sombra, seja a erguida na alma. Ambas fazem parte do nosso Eu, que carece de trabalho para encontrar harmonia.

O espírito Emmanuel chegou a afirmar que a maior caridade que se pode fazer é a da divulgação da Doutrina Espírita. Dizia-o porque estava consciente de que o progresso moral e intelectual liberta a criatura humana. Os ensinamentos do Espiritismo apelam à aprendizagem e ao estudo, não à passividade. Apelam a que cada um e mediante a sua condição, se interpele sobre o seu comportamento moral e ético, tanto face ao seu legado do passado, como ao que está a realizar no presente. A aprendizagem e o questionamento interior ajudam a esse processo.

É fundamental uma atitude não ociosa perante a vida e ativa perante as necessidades dos outros, perante a realidade dos fenómenos mediúnicos, e o que por ela se pode alcançar em favor desses outros. E aqueles que pela sua mediunidade estão mais despertos para o mundo dos Espíritos têm a oportunidade de usar esse instrumento de ajuda, também, como meio de resgate da sua dívida moral.

Resgate no sentido da mudança íntima face às vivências tidas e suas consequências do mal praticado, não por castigo, mas como impulso à aprendizagem, tal como Bertolt Brecht referia. Afinal, se somos responsáveis pelos nossos próprios atos e se temos livre-arbítrio, temos de ser nós a dizer basta ao erro e a nos modificarmos. Umas das modificações é educar o orgulho perdoando os males realizados, a nós mesmos (desenvolver o amor próprio) e aos outros (amor pelo próximo).

O perdão é uma lição muito presente na personagem de Lívia, da obra “Há dois Mil Anos” [2]. Lívia, a esposa do senador romano Públio Lêntulo (uma das reencarnações do Espírito Emmanuel), encontra na sua conversão à moral do Cristo ferramentas para perdoar o desafeto do marido. Lívia tinha compreendido as suas limitações humanas, pelo que ao se concentrar nos ensinamentos do Divino Mestre encontrou refúgio para se fortalecer espiritualmente. Pôde assim evitar que a angústia ou a leviandade tomassem conta do seu carácter. E as recompensas de tal atitude e determinação sortiram maravilhosos efeitos. Lívia completa um percurso vencedor de expiação e conhece pessoalmente Jesus, que a acolhe no momento do desencarne aliviando-lhe o sofrimento. Lívia morre na decadente arena romana atacada por feras.

Talvez a leitura da obra “Há dois Mil Anos” nos ajude a inspirar face às agruras dos dias e nos concite ao fortalecimento da fé, que é a fidelidade aos nossos propósitos. Os propósitos que nos fizeram reencarnar. Talvez nos ajude ainda a conciliar com os desavindos, e assim a sabermos perdoar-lhes as ofensas, mas também a buscar o perdão pelas nossas faltas.

Aquele que é perdoado é aquele que se magoou. Porém, compreender isto é extremamente difícil. Quem já vive a realidade desta forma está emocionalmente e espiritualmente mais preparado, pelo que terá uma relevante inteligência sensível. Pelo contrário, aquele que reage ao mal que lhe possam ter feito com o mal contido no seu coração, ou seja, que reage ao mal com a vingança, não está a saber viver de forma inteligente. E o mal tanto está na ação praticada contra alguém, como no alimentar de pensamentos de raiva contra outros.

Face ao mal só há uma resposta possível para os que querem viver crescendo: perdoar. Quantas vezes? Tantas quantas se depreende das palavras do Cristo: “Não vos digo que perdoeis até sete vezes, mas até setenta vezes sete vezes” (Mateus: 18: 22). Quer isto dizer, perdoar, não uma, não duas, mas as vezes que sejam necessárias até que o nosso resgate, face a erros pretéritos, termine. Até que o agressor deixe de o ser. Claro que isto não significa que nos deixemos agredir, ou que não nos devamos defender. A questão não está na ação que decorre da agressão, mas sim no que nos conduziu a ela e na nossa resposta face a esta. Está, portanto, na compreensão do seu todo.

E ainda que se saiba que cada um pagará os seus débitos morais até ao último centil, ou seja, que tem o que necessita para realizar a sua aprendizagem, muitos há que encaram essas dificuldades como castigo. Por isso, o processo de aprendizagem é à dimensão do resgate de cada um, no sentido de ser ajudado à produção de mudanças no seu íntimo, e, assim, a ser confrontado com o perdão – a conceder, a si e aos outros, e a recebê-lo. Perdoar é também não nos agredirmos, não complicarmos a nossa capacidade de ponderação pelo orgulho, ou de compreensão para lá do nosso egoísmo. Por isso, face ao bem, ou face ao mal, cada um tem o que precisa. Deus nunca se equivoca, nem negligencia ninguém, e nunca dá um fardo mais pesado que os ombros podem carregar.

A misericórdia é o complemento da brandura, porquanto aquele que não for misericordioso não poderá ser brando e pacífico. Ela consiste no esquecimento e no perdão das ofensas.” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Allan Kardec, Cap. X – Item 4).

Por seu turno, a preguiça de aprender, ou a mera vaidade intelectual, podem ser poderosos obstáculos à compreensão do perdão. É uma compreensão que não pode ser intelectualizada, pois tem de ser percecionada pela alma. O estudo continuado e o trabalho na mudança interior, associado ao esforço para nos tornarmos observadores de nós próprios, são fatores contribuintes para a melhoria íntima, logo para desenvolver a capacidade de amar o próximo fazendo cabal uso da razão. Isto terá implicações, inclusive, na nossa capacidade de resolução de problemas, sejam eles no lar, no trabalho, ou nas áreas de criação científica, artística ou criativa. Ao evoluirmos a nossa inteligência sensível estamos a caminhar para um ser integral mais completo.

O amor é, pois, a melhor das poções para que o perdão ao agressor o ajude a sarar a ferida que lhe possamos ter aberto por causas iniciadas num passado mais ou menos distante. Pois, o agressor já foi o agredido. A ferida aberta tem no agora a oportunidade de cura. O mal que nos chega, podendo ser uma consequência das nossas obras do passado, é também resultado do que fazemos e da forma como pensamos o presente. Mas como o amor tudo vence, ter amor é ter poder de resolução da dor e do conflito.

Estejamos atentos quando a ofensa magoar fundo. Não deixemos que ela germine a dor moral, a angústia, a desistência, ou o desalento. Não há efeito sem causa, pelo que se nos humildarmos face às nossas “quedas” do passado e as (naturais) tendências (semelhantes) no presente, vamos conseguir, progressivamente, mudar o comportamento e nos ajustarmos ao contexto que permite a nossa melhoria íntima. E, se ainda caímos, não guardemos culpa, pois Deus é paciente e nós também devemos sê-lo. Perseveremos, pois.

Afinal, só nos ofendemos se assumirmos o escândalo como dor e ignorarmos a oportunidade do autoconhecimento. Por isso, é imperioso manter o raciocínio focado na causa do escândalo – nós mesmos, o que nos deve retirar do papel da vítima. O escândalo sinaliza a forma como estamos na vida. Este encontro gera o autoconhecimento que ajuda a refletir e a alcançar o saber que há em nós, nomeadamente com a ajuda, pela inspiração, dos companheiros da espiritualidade superior. Façamos da boa leitura e da reflexão um veículo para apurar a mente, esclarecendo-nos.

Larguemos a pressa e a tormenta agitada das mil e uma ações, sem que delas saibamos fruir o devido valor. Aprendamos conectados com melhores pensamentos, com a esperança, com aqueles de quem gostamos. Sejamos produtivos e produtores, com tempo.

Notemos ainda que o dedo que aponta é o mesmo que um dia na nossa direção vai apontar, pois vivemos entrelaçados numa rede social e espiritual em que a dualidade espaço – tempo liga no mesmo espaço os factos ocorridos em tempos diferentes. Todos vivemos imersos em interações físicas (com ligações sociais) e espirituais (com ligações a espíritos afins) por via do pensamento. Por conseguinte, vigiemos o pensamento para que possamos ir melhorando o comportamento, e oremos, para que mantenhamos a boa sintonia espiritual – aquela que nos inspira e anima. Não sejamos críticos, mas se o formos, ganhemos consciência que esse ato esconde aquilo que somos – pois, por vezes, o que vemos no que criticamos é o efeito espelho do conteúdo que carregamos na nossa sombra. É aquilo que o nosso Self tenta libertar de nós.

E, se as pessoas usam o status, a rigidez de comportamentos e os bens materiais como máscaras para escaparem à sua sombra (aos seus defeitos, às suas debilidades), elas de nada servem para nos dissimularmos face à interação espiritual. Os espíritos vêem-nos tal como somos. E o que somos?

Um ser espiritual cujo campo magnético vibra à dimensão da condição moral. Não esqueçamos que ao esforço de melhoramento de cada um há o equivalente a nível de inspiração induzida ao pensamento pelos espíritos afins. E no seu oposto há os que nos perturbam, que induzem, ou se comprazem face ao escândalo, à dor. Há os que se esforçam para nos subjugar, pois, ainda não aprenderam a perdoar, não sabem o que é amar. Temos de ser nós a nos pormos a caminho, sem demoras, começando pela reforma e vigia dos próprios sentimentos.

Não é fácil mudarmos a rota de comportamentos alimentados ao longo de sucessivas reencarnações, pelo que importa iniciar o novo caminho o quanto antes e acelerar o ritmo da correção. A misericórdia de Deus deu-nos a oportunidade de o fazer ao longo de séculos, o que suaviza as provas e as expiações para o conseguirmos com menos dor. Deu-nos ainda o livre arbítrio e ensinamentos suficientes para fazermos um bom uso da nossa vontade.

Aproveitemos tudo e sem preguiça. Aproveitemos para perdoar e pedir perdão enquanto estamos a caminho com aqueles que são os nossos laços desavindos. Não percamos as oportunidades oferecidas e lembremos que “embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim” [3]. Se perdoarmos aceitando as diferenças morais entre ofendido e ofensor, a ofensa não se instala. Perdoar é não acolher a dor que alguém nos veio entregar. É ainda não agir pela vingança. A justiça é de Deus, não da vingança, ou do orgulho. As leis de Deus não são para o gozo da nossa vingança, mas sim para que o ofensor reconheça o erro e o sinta compreendendo a absoluta necessidade de deixar de o repetir: “Não faças aos outros o que não gostavas que fizessem a ti”, foi um dos ensinamentos de Jesus. Se trabalharmos podemos sair da cegueira materialista e libertar o “eu” do egoísmo. Sejamos pacientes no trabalho da nossa melhoria íntima, mas não percamos tempo.

E há testemunhos extraordinários ao nível do perdão e de renúncia ao egoísmo. Citemos o caso de Alcione, nascida em Ávila, Espanha (séc. XVII). Ela representa a assimilação dos ensinamentos do Cristo, tal como retratado no livro Renúncia [4]. Atentemos a um dos seus diálogos com o padre Damiano (uma das reencarnações do Espírito Emmanuel). Alcione, com a idade de 20 anos vivia um contexto de duras provas e de enorme sofrimento, por si e pela sua família.

As meditações destes dias têm-me ensinado que devemos tratar os pecadores não como criaturas perversas ou indesejáveis, mas como doentes necessitados de medicação constante. Não foi assim que Jesus nos tratou na sua missão divina? Tenho, agora, a convicção de que o Mestre encarou os romanos como pessoas atacadas pela moléstia da ambição e da tirania; os judeus, como enfermos da vaidade e do egoísmo destruidores; e, decerto, terá visto em Judas um companheiro dementado, tanto quanto em Pilatos um irmão perseguido pela doença do medo.” (p.255-256)

Enquanto não conseguirmos raciocinar como Alcione, e notemos a época em que ela o faz, bem como o limitadíssimo acesso à informação naquele tempo, não estaremos capazes de perdoar o agressor, pois não saberemos fazer bom uso da razão para compreender a origem da agressão. Mas se o conseguirmos fazer, estaremos a compreender que o agressor é o agredido e que o agredido é aquele que se alivia dos seus débitos face à lei moral que rege a vida do espírito – nós.

O agressor acumula débitos, enquanto o agredido resgata males por si causados, no passado. Ninguém é vítima do outro, mais sim e somente das suas próprias faltas. O agressor é, também, o que não soube perdoar, pelo que age no presente na sequência de uma causa do passado, ainda que disso não tenha consciência. Ele é o objeto de escândalo que o Evangelho refere.

No entanto, Jesus também referiu que sendo o escândalo necessário (visando o resgate do agredido), mal daquele por quem o escândalo venha (o agressor), pois incorre no acumular da sua própria dívida (moral). Aquele que se propõe a agredir e quer fazê-lo por se sentir agredido, se souber perdoar saberá evitar a ação de agressão – o escândalo. Fará prevalecer a lei do amor por não fazer ao outro o que não gostaria que lhe fizessem. Fará bem a si mesmo.

Temos de buscar mais conhecimento onde as explicações acrescentam saber. Um saber sem misticismo, sem líderes de sabedoria nem preconceitos, sem ganhos de qualquer tipo de dividendos – dar de graça o que de graça se recebe. Se assim não fazemos é porque ainda não percebemos. Seremos, então, um agressor em potencial, mas também a nossa própria vítima. O saber está onde seja possível aprender e compreender a lei do amor, a solidário para quem ainda não (se) entendeu.

Referências

[1] FRANCO, Divaldo P., orientado pelo Espírito Joana de Ângelis, Florações Evangélicas, 1971. Recuperado de http://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/l18.pdf.

[2] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo Espírito Emmanuel, Há Dois Mil Anos, FEB, 2004.

Título: Há dois mil anos

[3] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Xavier.

[4] XAVIER, F.C., pelo Espírito Emmanuel, Renúncia, 36ª edição, FEB, 2014.

Título: Renúncia