Da solidariedade à felicidade

 

“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim.” (João 14, 6-14)

Platão (séc. IV a.C.), filósofo da Grécia antiga, idealizou uma sociedade perfeita em que imperava a harmonia e a fraternidade. Nela só havia pessoas dóceis e capazes de compreender todas as renúncias que a razão lhes imporia, mesmo quando duras. Ali, o egoísmo estaria superado e as paixões controladas. Os interesses pessoais não se sobreporiam aos da totalidade social. Platão parece ter reconhecido o carácter utópico da sua proposta, tal como sucederia posteriormente com Aristóteles, outro filósofo da Grécia antiga. Aristóteles quando se pronunciou sobre a “Cidade” de Platão disse que se fosse pedido aos cidadãos para tratarem todas as pessoas por igual, eles acabariam por não cuidar de nenhum. Isto porque a nossa orientação é a de cuidar de pequenos grupos e apenas daqueles que pertencem ao nosso círculo íntimo.

Em A República, Platão descrevia, afinal, a premissa da solidariedade, aquela que séculos mais tarde seria explicada por Jesus como sendo parte integrante de algo maior: o amor. Desde Platão até Jesus passaram-se quatro séculos, e desde Jesus até aos nossos dias outros vinte se volveram. Mas quando olhamos para a sociedade em que vivemos, mais parece que o cepticismo de Aristóteles prevalece, particularmente se o observarmos a partir do prisma dos ensinamentos de Jesus. Contudo, se queremos alcançar um estado de maior completude na vida temos de aprender a modificar o nosso comportamento:

“A caridade moral consiste em se suportarem uns aos outros, e é o que menos fazeis nesse mundo inferior” (Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, Cap. XIII, nº 9) [1]

O indivíduo que vive segundo as premissas da solidariedade vive menos centrado em si, pelo que ganha disponibilidade para depositar mais atenção no conjunto, no bem comum. Uma sociedade com esta educação é mais protegida e desenvolvida, pois cada indivíduo beneficia da atenção do cuidado de muitos outros. O indivíduo solidário denota mais inteligência do que aquele que é mais egoísta e centrado em si. Afinal, o solidário terá mais sucesso porque pode somar às soluções que procura a inteligência de outros que, como ele, são solidários. Há assim uma vivência de solidariedade recíproca, em equipa, em comunidade. Ao contrário deste, o egoísta cuida somente de si, e, porque negligencia os outros, é provável que receba desses a mesma negligência. Uma sociedade de indivíduos unicamente preocupados com o seu próprio bem-estar é egoísta, logo, mais desprotegida, pois cada um tem somente o seu próprio olhar a cuidar de si.

Ser-se solidário é ainda não descurar a oração por aqueles que nos rodeiam, seja na família, na vizinhança ou no trabalho, mas também por aqueles a quem teremos prejudicado em vidas passadas – que acusamos de nos perturbarem (espiritualmente) no nosso quotidiano  (os chamados obsessores). A forma de agir para com estes segue, afinal, os mesmos pergaminhos da solidariedade. Se somos perturbados é porque há ignorância daqueles que sobre nós daquela forma agem. Mas se tal sucede, é porque também nós já fomos espiritualmente ignorantes para com eles.

Neste sentido, a oração é um importante instrumento de solidariedade e de ação, pois permite alinhar o nosso pensamento para com outros de forma ativa. Se imbuída de uma fé raciocinada, a oração é um canal de comunicação entre o nosso íntimo e aqueles a quem a dirigimos. E se dirigida a quem nos perturba é um ato de solidariedade. Afinal são eles os sofredores maiores, não nós. Pois, nós, deste lado da vida, reencarnados, trabalhamos pela nossa melhoria íntima, pela elevação de sentimentos – pelo menos temos essa oportunidade. E se somos capazes de orar por aqueles que ainda não alcançaram esse entendimento é porque já estamos mais preparados para viver à luz dos ensinamentos de Jesus – sermos caridosos, e, assim, enfrentarmos as nossas debilidades e delas (das chamadas dores) nos irmos libertando (evoluindo). Dores que tiveram como causa o nosso próprio comportamento. Sim, somos os responsáveis por elas, não somos vítimas. E ao aprendermos a aceitar estas dores – como oportunidades (motivadores) da mudança íntima, estamos a conquistar maior bem-estar.

O trabalho produzido por Allan Kardec – as cinco obras do Espiritismo, que dá origem à designada Nova Revelação, teve por base a premissa do trabalho solidário e de equipa. Foi assim que se produziu o conhecimento reunido naquelas obras ditadas pelos Espíritos e organizadas por Kardec (a partir da colaboração dos abnegados médiuns que receberam as respetivas comunicações dos Espíritos).

É pelo testemunho dos Espíritos que compreendemos a situação feliz ou de desgraça em que nos podemos, igualmente, vir a encontrar após a morte (do corpo). Testemunhos esses que também permitiram saber sobre a vida além-túmulo, nomeadamente como consequência da forma como se viveu na Terra – moralmente, para consigo mesmo e para com os outros.

De facto, vivemos imersos numa rede social e espiritual. O total de inteligência disponível por cada um é equivalente à sua e de todos que devolvem (em recomendação, ação ou indução ao pensamento) pelos atos que sobre terceiros realizamos. Em suma, é a resultante da interacção social e espiritual, nomeadamente a partir dos espíritos ligados àqueles a quem dirigimos o bem. Há nisto um efeito multiplicador, embora não contabilizável pelo nosso entendimento, pois é difícil assimilar esta ideia. Mas com o tempo vamos alcançando o verdadeiro sentido da mensagem de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai, senão por mim.” (João 14, 6-14) O que nos diz esta frase?

Diz-nos que os ensinamentos que nos deixou são o caminho, natural, para a evolução humana. Desta forma, o sentido da frase vai muito para lá do significado literal. O Caminho representa os seus ensinamentos. A Verdade surge, assim, em contraposição ao que até então era compreendido sobre Deus e o propósito de vivermos com base no amor. A Vida, que continua, pelo que todo o efeito tem uma causa e esse efeito não encerra com a morte, pelo que todos colhem segundo as suas obras – se se boas, apesar de sacrifícios, elas resultam em benefícios, nesta ou vidas posteriores (o mesmo em relação à vida presente como resultado de ações no passado). Ninguém evolui espiritualmente – elevando-se em direção a Deus –, que não seja pelo assimilar da compreensão e, sobretudo, pela vivência daqueles ensinamentos – pela sua prática. Em suma, é pelo exemplo de Jesus, plasmado na sua mensagem, que evoluímos, até chegamos ao Pai. E o que isso significa? Bem estar total.

Porém, há que aceitar que o caminho individual e coletivo é longo e lento. É longo o caminho para a felicidade, mas é certo que o estamos a fazer, pois a evolução é inexorável, embora nem todos a estejam a fazer ao mesmo ritmo, dada as escolhas de cada um e diferenças de vontade expressas por estes. Cada um ao ritmo das suas escolhas e do que consegue compreender.

Desde Platão, que idealizou o mundo do amor pelo conceito da solidariedade na cidade ideal, até Jesus, e de Jesus, pelo intermédio da sua plêiade de Espíritos, até à codificação Espírita, a jornada de evolução espiritual tem sido longa. Pois, usemos bem esta última oportunidade que nos está a ser dada. Façamo-lo por nós e pelos outros, inspirando-os à mudança ou à perseverança para mais solidariedade e amor ao próximo. O desapego do materialismo (não do que nos faz falta), e o libertar das paixões (e vícios) que nos atrasam, permitem libertar o “eu” egótico e doente que nos cansa. Fazê-lo é seguirmos por bom caminho a nosso favor.

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, 1ª Ed., Publicações Hellil.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo