As narrativas humanas: do corpóreo ao espiritual

 

O investigador canadiano Marshal McLuhan (1911-1980) propôs quatro épocas principais para ilustrar a evolução da comunicação. O Espiritismo surge durante a designada quarta época da comunicação e a partir dele a possibilidade de compreender o pensamento como uma das narrativas humanas.

 

A proposta das quatro épocas de McLuhan [1] para ilustrar a evolução da comunicação incluí, primeiro, a idade tribal, em que a comunicação estava associada às funções acústicas e sensitivas, segundo, a idade da literacia, relacionada com a invenção do alfabeto, terceiro, a idade da Impressa (1450), por fim, a quarta, a invenção do telégrafo, a idade da Eletrónica e da noção de aldeia global (1850) [2]. E é na coincidência da quarta época da comunicação que surge o Espiritismo. A época que se seguiu foi a dos sistemas de informação e da computação. Ganharam-se a partir daí novas ferramentas que vieram ajudar à perceção do pensamento como uma das narrativas humanas e de comunicação. É provável que se venha a formalizar conhecimento de ciência que sistematize este facto como a sexta época de comunicação, apesar de existir desde sempre, só com a consciência do seu uso se pode fazer dela um instrumento (de bem).

Ainda que escassos, os investigadores vêm publicando trabalhos em torno da comunicabilidade dos espíritos, ou seja, provas sobre a materialização do pensamento e sua transmissão, neste caso, por um médium, tal como feito pelos três investigadores brasileiros premiados no concurso BICS, 2021 [3].

A etapa dos sistemas de computação teve origem com o surgimento do primeiro computador digital (1946) [4]. Surge após o desenvolvimento da máquina de Turing [5]. À data julgava-se que o cérebro humano era tal como o computador, que funcionava numa base de lógica matemática. Esta forma de interpretar a realidade, puramente mecanicista (cartesiana), moldou a sociedade até ao arranque do século XXI. E é nesta transição de milénio que uma nova forma de pensamento se vai consolidando. Este molda-se por construtos mais abstratos e assentes numa conceção mais holística da realidade.

A etapa dos sistemas de informação e da computação inclui a invenção do computador, da Internet e dos designados media digitais (redes sociais, blogs, telemóveis, etc.). A partir destes meios iniciam-se as partilhas das narrativas sobre o saber social, nomeadamente pelas estórias de cada um. E a evolução da tecnologia continua até à mimetização de alguns dos sentidos humanos, i.e., a imagem, o áudio e o vídeo, emulados pela multimédia.

Depois, surge a partilha instantânea de comentários, de mimes, de sentimentos (por vezes impulsivamente como reação ao que nos é exposto pela emergência televisiva, gráfica dos computadores ou das redes sociais. Sem nos apercebermos mergulhamos na expressão dos construtos do pensamento de outros. Sucede tal como referido pelo investigador da área dos novos media Lev Manovich [6]. O pensamento habitualmente “arrumado” em camadas mais recônditas e implícitas pode agora ser expresso de forma explícita. Expressamos emoções, realizamos raciocínios, confiamos sem conhecer e compreendemos sem ver ou estar, tal como ocorre nas interações em redes sociais online. Esta é uma prática que surge alinhada com a realidade contemporânea, designada por era do pensamento conceptual – mais abstrato [7].

Em 1997, o filósofo e pesquisador em ciência da informação Pierre Lévy propõe no seu livro “Ideografia Dinâmica” [8] uma representação figurativa e animada dos modelos mentais, particularmente pela reduplicação da linguagem fonética num plano visual. A pretensão é, pela imagem, fazer tal como sucede com o alfabeto, ou seja, imprimir à comunicação imagética o que se concretiza pela linguagem semântica, da palavra escrita.

Hoje, quando partilhamos informação nos novos meios de media podemos receber respostas imediatas e estabelecer comunicação, mesmo sem escrever uma palavra. É o exemplo da partilha de imagens e símbolos, tais como os emoticons. De certa forma é uma materialização da visão de Lévy.

O pensamento transmite-se de forma ideoplástica, por imagens. As imagens são emitidas/capturadas pela glândula pineal e traduzidas para a linguagem de cada indivíduo pelo cérebro.

Marshal McLuhan assinala o início da designada quarta etapa da comunicação (1850) no mesmo período em que Allan Kardec produz as cinco obras da codificação espírita (1857 – 1868) [9]. Obras que expõem o entendimento dos Espíritos sobre o desenrolar da vida para além do corpo e o propósito da nossa existência humana.

“tudo se encadeia na natureza, desde o átomo primitivo até ao arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Admirável lei de harmonia, de que o vosso espírito limitado ainda não pode abranger o conjunto” [9, Nota de Kardec à questão 540, e RE, 1860, Julho, p. 2º, item 8].

Ainda que de forma grosseira, arriscamos a estabelecer um paralelo entre as narrativas humanas e a síntese de Kardec sobre a evolução espiritual. É um argumento arrojado, mas tentemos explicá-lo com prudência.

Se Deus é a causa primeira e inteligente de todas as coisas, então toda a obra concretizada pelo ser humano acontece como consequência da Sua vontade. E se todo o propósito visa a evolução do ser espiritual que somos, a evolução tecnológica dos meios de comunicação também tem o mesmo fim. Isto, embora, entre o princípio e o fim almejado haja desvios que farão parte do próprio processo de evolução humana.

Para melhor compreendermos estas relações atentemos à questão 459 de “O Livro dos Espíritos” [10] colocada por Kardec:

“Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos atos? Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem.”

Diríamos assim que o acto de falar e escrever é uma expressão da comunicação corpórea, encarnada e, por conseguinte, mais primária. O pensar é uma expressão da comunicação não corpórea, subjacente ao espírito (esteja ele encarnado, ou não), sendo esta mais elevada (por analogia com o arcanjo). Os meios de comunicação digitais ao permitirem a expressão das narrativas humanas tendem a ilustrar a informação que julgávamos pertença individual e encerrada na mente de cada um. Por ela transmite-se, receciona-se e influencia-se o bem-estar e o comportamento do próprio e dos destinatários dos pensamentos impressos nos conteúdos transmitidos.

Hoje, vivenciamos a transição do pensamento mecanicista para um mais abstrato, também designado de mosaico, este como advento de uma nova etapa, mais holística e com uma forte componente espiritual. Será eventualmente uma etapa sustentada num novo entendimento sobre o papel de cada um sobre si mesmo e sobre o outro, em que o ser consciente (residência do ego) e o ser inconsciente (residência do Self) convivem de forma a sermos seres humanos mais empáticos, compassivos e inteligentes, por que amamos mais.

Talvez esta seja apenas mais uma forma de ver a materialização da obra Deus no que concerne à evolução humana. E na medida que as narrativas humanas e espirituais se integram num todo, que ganha sentido em nós, encaminhamo-nos para o vórtice da convergência para o mesmo propósito, o da compreensão da Verdade: somos seres espirituais a viver experiências num corpo físico, e em que o “Amai-vos e instruí-vos” ensinado por Jesus é uma síntese sobre como podemos ganhar mais bem-estar. Se a instrução nos ajuda a vencer a ignorância e o amor a nos conciliarmos, como seres espirituais, então estaremos a ser preparados para olhar o outro como uma extensão de nós, e a quem queremos igual bem.

Referências

[1] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Marshall_McLuhantm.

[2] Recuperado dehttp://www.livinginternet.com/i/ii_mcluhan.h.

[3] Rocha, A.C., Weiler, M., Casseb, R.F., (2021) “Mediumship as the Best Evidence for the Afterlife: Francisco Cândido Xavier, a White Crow”, Essay submitted to the BICS competition, recuperado de https://bigelowinstitute.org/contest_winners3.php.

[4] Recuperado dehttps://pt.wikipedia.org/wiki/ENIAC.

[5] Recuperado dehttps://pt.wikipedia.org/wiki/Alan_Turing.

[6] MANOVICH, Lev, What is new Media. MIT Press, 2001.

[7] PINK, Daniel H, A Nova Inteligência, Oficina do Livro, 2008.

[8] LÉVI, Pierre. Ideografia Dinâmica – Para uma Imaginação Artificial?, Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

[9] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Allan_Kardec.

[10] KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos, Hellil, 2017.

Título: O Livro dos Espíritos