O amor na responsabilidade pelo outro

 

A lei da Natureza impõe aos filhos a obrigação de trabalharem para seus pais? Certamente, do mesmo modo que os pais têm que trabalhar para seus filhos. Foi por isso que Deus fez do amor filial e do amor paterno um sentimento natural. Foi para que, por essa afeição recíproca, os membros de uma família se sentissem impelidos a ajudarem-se mutuamente, o que, aliás, com muita frequência se esquece na vossa sociedade actual”

(Allan Kardec, “O Livro dos Espíritos”, cap. III, Questão 681).

 

O que é o amor filial?

O locutor da rádio Comercial Pedro Ribeiro sintetizava no seu blog, em setembro de 2010 [1], o amor filial a partir da comoção e da dor, dizendo: – Hoje, estive morto. Senti que toda a vida se escapava pelo ar que, aflito e a custo, respirava, enquanto as lágrimas eram gritadas, louco no carro, os olhos à procura, à procura, à procura. Morri, ali.

Pedro Ribeiro descrevia o pânico vivido pelo desaparecimento da sua filha. À saída da escola a sua filha devia entrar na carrinha do ATL. Todavia, a escola não controlou a saída, pelo que a menina, ao ver uma outra carrinha de ATL, entrou. E, por coincidência, ou hábito, em nenhuma das duas carrinhas se validou as presenças/ ausências. Resultado: o pai, que a aguardava na chegada da carrinha (certa), não a encontrou..

Pedro Ribeiro continuava assim o seu testemunho: – Durante duas horas, morri. Percorri ruas de possíveis percursos, olhei para todas as sombras, parques infantis, supermercados, escola antiga, liguei para os pais de colegas dela, todos os absurdos e horrores passaram pela minha cabeça, chamei o seu nome, entre choro, em ruas e em todos os recantos da escola. Nada. Evaporou-se. Horrível. Uma tristeza, uma aflição, um horror que nunca mais vou esquecer. E quando o telefone tocou e era ela, aquela voz doce da minha princesa, minha vida, meu ar, meu sopro de vida, eu soube o que era renascer. E desfiz-me em lágrimas de novo, e dali até ao tal After School, que teve a minha filha à sua guarda por engano, até ela pedir para ligarem ao pai, levei um segundo e levei toda a vida. Obrigado meu Deus, obrigado! Estacionei às três pancadas, voei em passo trocado de nervos, pela rua fora, Mafaldinha, Mafaldinha, Mafaldinha, cego de amor aflito, só há descanso e vida quando a abraçar e estiver tudo bem. Quando a abracei, e ela, agarrada a mim, me disse, apenas: “Olá Papá”, eu soube que tinha renascido. E ela também, coitadinha.

As palavras deste pungente testemunho dizem tudo. O amor tem aquela força. E este é o amor filial. Neste amor é visível a responsabilidade pela guarda, pela permanente vigia e preocupação para com o outro. Não está em questão se somos ou como somos amados, mas sim como se sente o amor filial, que é uma enorme responsabilidade. Porém, existem pais que não toleram os filhos, mães que se revoltam contra os próprios descendentes, filhos que se revelam inimigos dos próprios pais e irmãos que se maltratam ou liquidam por força do magnetismo adulterado da antipatia congénita [2]. E qual a razão disto?

A lei divina permite que espíritos desavindos se encontrem no contexto dos laços de sangue e de família para que por esses laços e pelo afeto, antigos antagonistas se reencontrem e se amem, ou que pelo menos menorizem o que os opunha.Tudo deriva de causas relacionadas com comportamentos tidos em vidas passadas. Sim, se a vida continua e voltamos a nascer, num novo corpo, os sentimentos, laços e comportamentos tidos mantêm-se. A nossa evolução (espiritual/ moral) depende do exercício de superação das nossas debilidades. 

A necessidade de resolução de conflitos entre espíritos desavindos proporciona o reencontro, inclusive no seio da mesma família. É ali que se vai trabalhar o sarar das feridas pelo nutrir do amor, maioritariamente vestido pelas lições fraternais da maternidade, paternidade e do laço de sangue. Neste amparo de reparação a mãe assume um papel de grande responsabilidade. Por ela aprendem-se os valores da tolerância mais pura, sem poupanças de energia quando esta lhe é requerida. A mãe sacrifica-se de todos os modos ao seu alcance pela estabilidade do lar e pela paz dos filhos ensinando-lhes que toda a dor é respeitável, que todo o trabalho edificante é divino e que todo o desperdício é falta grave. Por isso, ensina-lhes o respeito pelo infortúnio alheio prestando bom conselho sem parcialidade, e estimulando ao trabalho, à união e à harmonia entre todos. [3]

O coração materno é um vaso de amor em que a vida se manifesta no mundo por meio de uma missão, a materna. Esta reveste-se de encargos sublimes, sobretudo em lares onde Espíritos antagónicos, ou mesmo inimigos, se encontram. É um encontro temporário à luz da vida do Espírito, mas relevante para o apaziguar das almas pelo amor da mãe, pelo amor e reverência disciplinadora perante o pai e pelos laços que os vão unir no parentesco físico. Face a estas turbulências não é invulgar a maternidade exigir um maior desenvolvimento da sensibilidade, ternura e paciência, o que aumenta a capacidade do amor na mulher. [4]

Face a esta entrega, cabe aos filhos compreender o mandamento “Honrai o vosso pai e a vossa mãe”. O termo honrar inclui o significado profundo da lei geral da caridade e do amor ao próximo, pelo que não basta respeitá-los. É imperioso assisti-los na necessidade e proporcionar-lhes repouso na velhice. É fundamental cercá-los de cuidados, tal como eles fizeram para com os filhos, nomeadamente na infância destes (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Allan Kardec).

Contudo, sucedem-se as histórias de ingratidão dos filhos para com os pais. Estas têm habitualmente duas causas comuns. Uma relaciona-se com as imperfeições dos filhos e a outra com as falhas dos pais. A ingratidão dos filhos gera um contexto de vários problemas morais, que, vastas vezes, ocorre no já enfraquecido organismo social circundante. Um problema habitualmente difícil de tratar e recuperar.

Por outro lado, muitos pais, demasiado preocupados, quase que competitivamente inquietos com o status e perfil cognitivo dos seus filhos, descuidam o trabalho em prol da ética, do carácter e da docilidade de espírito. Estes pais cometem erros graves influenciando profundamente o comportamento dos filhos, nomeadamente o seu bem-estar futuro. Esta dinâmica acaba por gerar um forte potencial de ingratidão no coração dos filhos. Por imaturidade, incapacidade para assumirem as suas responsabilidades, ou vivendo atormentados pelos prazeres terrestres, estes pais acabam por se deixar corromper pela leviandade, desequilíbrio e desajuste, o que os leva a falhar na educação dos seus filhos. Por vezes fazem-no pela desenfreada competição, utópica, da sociedade moderna, materialista. [5]

Diferente disto vivem aqueles que recebem a melhor educação e as mais verdadeiras demonstrações de amor, de sacrifício e de carinho. Vivem a oportunidade de experimentar a paz no lar, de nutrirem saúde mental e o ensinamento espiritual. Alguns têm ainda a possibilidade de receber os ensinamentos de Jesus por via das lições do espiritismo, criando em si novas ferramentas para o raciocínio e renovada esperança nos seus corações.

A par das responsabilidades do amor maternal, que inclui a dádiva da vida, o amor paternal também tem responsabilidades semelhantes ao nível da educação e dos direitos ao gozo e cuidados da companhia dos filhos. Sendo a família um todo é pela união que se gera o expoente do amor. E se o todo se separa, fisicamente, pelas rotas da vida, como por exemplo pelo divórcio do casal, esse expoente de amor deve ser mantido para que o tudo se mantenha a funcionar.

“Foi por isso que Deus fez do amor filial e do amor paterno um sentimento natural. Foi para que, por essa afeição recíproca, os membros de uma família se sentissem impelidos a ajudarem-se mutuamente.” (O Livro dos Espíritos, Allan Kardec. Terceira Parte – Das leis morais, cap. III, Questão 681).

Referências

[1] Blog de Pedro Ribeiro. Recuperado de http://osdiasuteis.blogs.sapo.pt/483282.html.

[2] XAVIER, Francisco Cândido, Angústia materna. In: Luz No Lar. Por Diversos Espíritos. 3º Ed. Rio de Janeiro, FEB, 1978.

[3] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo Espírito Emmanuel, Dever. In: O Consolador. Item 11, questão 189, Rio de Janeiro, FEB, 1985.

[4] FRANCO, Divaldo Pereira, orientado pelos Espíritos Joanna de Ângelis e Marco Prisco, Feminismo. In: Luz Viva. Salvador (BA), Livraria Espírita “Alvorada” Editora, 1984.

[5] Recuperado de http://esde.feb.tripod.com/rot16_6.htm.