Voluntariado

 

“Colhe as rosas do caminho no espinheiro dos testemunhos… Entesoura as moedas invisíveis do amor no templo do coração!… Retempera o ânimo varonil, em contacto com o rocio divino da gratidão e da bondade!… Entretanto, não te detenhas. Caminha!… É necessário ascender”

(Francisco de Assis, pela mediunidade de Chico Xavier, 17 de agosto de 1951)

É o amor que dinamiza a iniciativa de recolha de alimentos que há vários anos se foi realizando por um grupo de voluntários de um Centro Espírita da região centro do país. Essas recolhas contribuíam para fazer cabazes de alimentos a distribuir por mais de meia centena de famílias da região. Hoje esse trabalho de assistência com a distribuição do cabaz mantém-se, porém já não se realiza a caravana, pois foi substituída por outros métodos de recolha de apoio. E tal como aquela, outras iniciativas há, singulares ou coletivas, por todo o país. Todas se revestem do mesmo espírito amoroso de Francisco de Assis.

Cada um vive a condição que melhor serve à sua progressão moral. Nascemos em diferentes condições de carência, ou abundância, de serviço para consigo e para com outros. Tudo visa ajudar o indivíduo a vivenciar a aprendizagem que ajude a moldar o seu comportamento, pelo que face às dificuldades, ou aparentes facilidades, ninguém vive em castigo ou vantagem, mas sim no enquadramento que semeou. Somos um instrumento e ele pode ser de bem, independentemente da nossa condição. A caridade, no seu sentido mais abrangente, significa “benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições dos outros e perdão das ofensas” (O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, questão 886) [1]. O auxílio de uma Caravana ou qualquer outra iniciativa de apoio a terceiros dirige-se aos que se encontram na situação de aceitar ajuda, aos que vivem a “oportunidade” de se humildar perante a dificuldade. Eventualmente, humildarem alguma dimensão hiperbólica do seu carácter, aquela que lhes terá precipitado o erro moral pelo qual (pelos quais) se vive agora aquele resgate – no contexto da sua vida atual.

Nestas iniciativas, as fontes da generosidade (os dadores) são por vezes tão carentes de ajuda quanto os destinatários dos bens recolhidos. Contudo, querem contribuir. A experiência porta a porta mostra que a generosidade não está na disponibilidade material, mas sim na de coração. Os mais humildes são os mais solidários. E embora fosse de esperar um cuidado mais avaro na casa do desvalido dada a sua condição de maior necessidade, contudo, ocorre o inverso, pois são estes os mais solidários. Se calhar, por estarem mais próximos da compreensão do sentido da queda e das dores do outro, pois reconhecem-nas em si, no seu dia a dia. Se calhar porque o seu orgulho não lhes obstrui a empatia pelas dores de outros.

Constata-se ainda que os mais desprovidos materialmente têm um maior foco no essencial, o que exclui o ócio, o desperdício e alguns vícios humanos que conduzem o indivíduo à queda moral, ao egoísmo, ao inflar do orgulho, da vaidade, da avareza. Será a pobreza uma condição boa para melhor evoluirmos e aprendermos a caridade? Naturalmente que não, contudo, a abundância não vigiada pode gerar egoísmo e negligência para com o próximo.

A miopia de sentimentos de amor pode alimentar o fechamento do ser sobre si mesmo conduzindo-o a consequências gravosas. E estas não são, de todo, obliteráveis à luz da Lei de Causa e Efeito. A responsabilidade face ao outro é algo para todos e dela nunca deveremos fugir. A ajuda que se nega hoje pode ser aquela que nos poderá faltar amanhã.

Deus não nos faz viver, como expiação, nenhuma dor que seja escusada. Tudo contribui para a evolução do espírito, razão pela qual a vida na abundância pode encerrar provas mais difíceis do que aquelas que se vivem na privação, na humildade. A abundância, se mal gerida, se vivida sem caridade, carimba a privação para uma vida futura, eventualmente já sentida ao nível dos sentimentos e da harmonia íntima na vida presente. Isto não sucede por castigo, mas sim para que a dor sentida desenvolva ao espírito sentimentos que o instrua, por exemplo, no valor da caridade. O objetivo é sempre o mesmo: evoluir e vencer as paixões terrenas, pelo que a riqueza e a pobreza devem ser encaradas com o máximo de respeito. O essencial está no coração.

A carência material é um instrumento para humildar o espírito. A luz produzida pela abundância material, quando não usada como luminária para prover a quantos possam dela beneficiar, pode tornar-se na luz que encandeia o materialista, conduzindo o indivíduo à cegueira. Cegueira sobre a responsabilidade face à abundância. Uma abundância que é dada por Deus e que de igual forma a pode tirar com vista à correção moral. Neste sentido, cabe a cada um fazer um bom uso do atributo recebido, sendo a caridade, material ou moral, um dos reflexos da aprendizagem com a qual todos devemos estar comprometidos.

Por vezes o excesso material é distrativo e centrípeto, pois dá-nos a sensação de que a vida acontece para dentro de cada um de nós, para os nossos gozos, para o consolo individual. Assim, para que não se caia nesse erro, há que encarar a vida de forma centrífuga, ou seja, a partir de cada um em direção aos outros. Desta forma recebe-se mais, pois o amor em que estamos a participar propaga-se de forma distributiva. Na devolução desse comportamento vem o bem entregue, ou seja, as consequências promovidas pela Lei de Causa e Efeito.

A caridade é explicada por Jesus como sendo a maior das virtudes, pois permite colocar em prática um mandamento fundamental: “amar o próximo como a si mesmo” [2]. A essência desse amor visa, acima de tudo, a regeneração do ser humano pela educação e pela conquista de si mesmo. Saber amar o próximo é fazer uso da inteligência, não é ser-se “bonzinho”, não é gostar dos outros porque é moralmente adequado. É compreender o sentido da vida e a rede de laços sociais (na Terra) e espirituais (no Todo), que une cada um a Deus: o Criador do Todo.

Somos fruto da mesma criação e votados ao mesmo destino: evoluir. Afinal, não há fronteiras, nem diferenças de raça ou de estatuto social. Não há diferenças de género (sexo) ou de estado entre vivo ou morto ao nível das responsabilidades face à vida e à caridade para com outros, pois somos seres espirituais (eternos) a viver experiências físicas, num corpo, por meio de diferentes reencarnações, vivenciadas no contexto das nossas necessidades evolutivas.

São contáveis as formas de realizarmos o mal. Estas são limitadas e bem conhecidas. O mal é igual para todos e em ambos os planos – terreno e espiritual. As consequências do mal, o sofrimento, é idêntico para todos e em todas as dimensões da vida. Porém, as formas de praticar o bem são incontáveis. A sua infinidade deve motivar-nos a agir em nome desse bem diversificando as nossas ações com esse fim.

E se não temos de viver em escassez para se perceber a importância do bem, da caridade, da empatia e compaixão, também não é por sermos ricos que nos temos de tornar incapazes de ver esta realidade. Todos podemos ver e compreender o bem e o sentido de equipa que está na solidariedade. Por exemplo, os voluntários que participam na recolha de alimentos constatam-no permanentemente. O fosso a evitar é o egoísmo e o individualismo em que muitos de nós caímos. Afinal não há qualquer mal na criação de riqueza, nem vergonha na pobreza. Contudo, na prática do bem há um instrumento que todos podemos usar para expressar a atenção pelos que resgatam em dificuldade, independentemente da sua condição de partida.

Francisco de Assis ao ter compreendido isto, sentindo-o, foi obreiro na caridade. Ele agiu, pois tinha compreendido, como poucos, que a expressão do amor se pode exercitar de inúmeras formas, particularmente em favor de quem não conhecemos.

Todos podemos marcar a diferença em favor de outros, seja pela doação de tempo, atenção, bens, etc., ou de forma mais estrutural, por exemplo, gerando emprego, fazendo voluntariado, etc. O amor, na sua expressão de caridade, é, afinal, um apelo ao sentido de responsabilidade de cada um.

Fica claro que agir com caridade, não é apenas dar aquilo que não precisamos, para descargo de consciência. E menos ainda é marcar pontos para os “outros” verem, ou guardar um “lugar no Céu”, que afinal não existe como tal. É, isso sim, agir com indulgência. Esta é a responsabilidade: dar com uma mão sem que a outra tenha de saber, tal como referia Jesus. Estes são princípios fundamentais sobre os quais deveremos meditar para melhor compreendermos a importância da caridade.

No voluntariado que recolhe bens para terceiros ou lhos entrega, o bem intermediado, por vezes, é o tempo do outro, a palavra de atenção, o sorriso carinhoso, o instante em que se sai da clausura da solidão – seja esta a pessoa que dá ou recebe. É a pessoa que abre a porta, ou o seu coração.

Quando alguns destes “fazedores de pontes e laços” baterem à sua porta (mas não se equivoque sobre quem bate) ou lhe peça ajuda sorria, dê, receba, partilhe, mas sorria, porque é no desenho do seu sorriso que está a construção do seu amor.

 

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos. 1ª ed. – Hellil : Associação Social Cultural Espiritualista, Viseu, 2017.

Título: O Livro dos Espíritos

[2] Kardecpedia.com. Recuperado de https://www.kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/887/o-evangelho-segundo-oespiritismo/2064/capitulo-xi-amar-o-proximo-como-a-si-mesmo.