Para que me serve saber de Deus?

 

“Para acreditar em Deus, basta ao homem lançar os olhos sobre as obras da criação. O universo existe, portanto ele tem uma causa. Duvidar da existência de Deus seria negar que todo efeito tem uma causa e admitir que o nada pôde fazer alguma coisa”

(Allan Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Primeira Parte – As Causas Primárias, cap.1, Deus)

Não é fácil compreender Deus, a Sua existência, nem a utilidade dessa compreensão para o quotidiano de cada um. Mas façamos o exercício de nos imaginarmos num país sem religiões. Um país onde os ensinamentos sobre o bem e o mal fossem passados para os mais novos a partir dos mais velhos. E onde todos tivessem como guia ensinamentos filosóficos sábios e úteis, mas estéreis a nível espiritual. Não é preciso imaginar, pois basta conhecer a realidade da China para conhecermos algo assim. Os referidos ensinamentos sábios vêm de Confúcio. No entanto, não é preciso irmos à China para encontrarmos ateus, há-os por todo o planeta. E qual a diferença entre os que entendem a existência de Deus e os que o desconhecem?

A nossa ligação a Deus manifesta-se nas leis universais que regem as consequências do comportamento e das responsabilidades de cada um. Ao pensarmos, verbalizarmos, ou agirmos exercemos uma ação sobre as obras de Deus (outros espíritos e a natureza). E como tudo é obra de Deus, estamos a intervir, bem ou mal, na harmonia da Sua criação. Por conseguinte, a elevação ética e moral com que intervimos tem repercussão nessa religação a Deus por via das leis morais por Ele criadas – daí as consequências religiosas da nossa existência e a nossa, natural, centelha divina.

Deus, “causa primária de todas as coisas” (“O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec), deve ser alvo de compreensão, não propriamente de crença. Porém, os homens das religiões criaram esse Deus em que se deve acreditar ao invés de compreender. Essa distorção da verdade de Deus, que é amor, fez as pessoas tornarem-se crentes pelo medo e pela culpa, em vez de ser pelo uso do raciocínio. O uso da razão e da nova ciência, que está plasmada no Evangelho e cientificada pelo Espiritismo, conduz-nos à existência de Deus a partir da compreensão das Suas realidades e obra. Leva-nos a compreender Deus e não a crer (por dogma) em Deus.

As realidades de Deus e Sua obra estão, por exemplo, na criação do Universo, da Terra, da Natureza, do ser humano. Sim, tudo e todos são criaturas de Deus. E por isso Jesus se referia ao Pai, e Kardec explicava Deus como a causa primeira e inteligente de tudo e todos nós. Compreender Deus por esta perspetiva é vermo-nos na Sua existência a partir de uma base racional. Ao se fazer uso da razão podemos igualmente perceber o sentido da fé, que é a fidelidade ao propósito que nos balanceia para diante, pois sabemos que teremos sempre amparo, ajuda e inspiração para as boas ideias, mas também proteção contra as ideias que nos desviam do caminho – a inspiração ao bem sempre nos chega, mas nem sempre a conseguimos ou queremos escutar.

E podemos ser escutados por Deus? Pode um pedido nosso ser atendido? Sim.

A ajuda chega-nos por meio dos Espíritos que Dele recebem a autorização para a ação. Uma ação que se traduz, por exemplo, na inspiração a ideias que solucionam as nossas preocupações, que auxiliam a intuição, que nos motivam à ação quando as forças fraquejam, etc. E a ideia que é inspirada é como uma ação espiritual que atua sobre a consciência da pessoa. Mas vai ser o livre arbítrio da pessoa a decidir se faz agir. Não há determinismo, nem interferência na lei de causa e efeito. É tal como se refere na obra de Joana D’Arc, Médium, por Léon Denis:

Assim, para os que sabem interrogar o invisível por meio da concentração e da prece, o pensamento divino desce, degrau a degrau, das maiores alturas do espaço até às profundezas da Humanidade.” (p. 49) [1].

Os ateus não veem a Deus (não têm como compreender Deus), pelo que não têm como conhecer esta realidade. Regem-se por princípios gerais, aceitam-nos e vivem-nos o melhor que sabem. Muitos vivem uma vida de retidão e irrepreensibilidade moral. Cumprem bem o seu papel na escalada de evolução espiritual. Porém, fica-lhes em falta a centelha da fé e da razão para raciocinarem em favor de si mesmos e dos outros enquanto filhos de um Pai misericordioso. São órfãos por ignorância, não por condição.

São as leis morais criadas por Deus que regem a vida do Espírito (exemplo, lei de causa e efeito). E estas são tão consequentes e concretas, tal como acontece com a lei da gravidade relativamente à matéria. Perceber isto é ainda entender o sentido da Sua obra, pelo que acreditar em Deus não basta, se não formos capazes de questionar e interpretar a razão porque acreditamos. Assim, quando questionados sobre se acreditamos em Deus, talvez devamos pensar se compreendemos o facto de que tudo o que o Homem não criou, Deus fez, devendo esse facto ser prova suficiente da sua existência e intervenção na criação.

Se usarmos a razão para compreender, em vez de nos limitarmos a acreditar, sem questionar, sentimo-nos parte de um todo, em que na parte somos seres espirituais e no todo somos eternos e naturalmente religiosos – porque a Deus estamos religados dentro da realidade por Si criada. Por isso, compreender é diferente de acreditar, embora no acreditar originado no coração viva o respaldado da fé raciocinada.

Se aprendermos a interpretar a realidade desta forma aprenderemos a dar mais atenção às realidades eternas, que são relativas à vida do espírito. Isto, em vez de nos centrarmos naquilo que é efémero, temporário, tal como são as coisas da matéria. Nas realidades eternas podemos incluir a aprendizagem, a evolução moral, a lisura ética nas ações e na forma de pensamento – honestidade, transparência, respeito pelos direitos alheios. É tal como refere o Espírito Emmanuel: “O pensamento acolhe. A ação realiza”. Todas estas realidades constroem as fibras de sabedoria que moldam o Espírito, pelo que perduram na sua existência catapultando o indivíduo para diante na sua evolução, a cada reencarnação do espírito.

Nas realidades efémeras estão as coisas da Terra, como os títulos honoríficos e sociais, os ditos direitos de casta ou de família, as posses e as propriedades. Nenhum destes atributos e bens nos valem na caminhada de evolução, pois são somente relativos à vida no corpo e à reencarnação a que digam respeito. São instrumentos na evolução e não ganhos nessa evolução, e, por isso, efémeras.

Ora, desconhecer a existência de Deus é desconhecer as realidades eternas que enriquecem o Espírito, cada um de nós, pelo que o plantio dessa riqueza é mais difícil. Saber de Deus, mas não compreender a nossa realidade espiritual, também não facilita. A incompreensão da vida pela perspetiva da evolução do Espírito reduz-nos a capacidade de interpretação e de ação face às conjeturas da vida. Algumas dessas conjeturas refletem-se nas consequências decorrentes da lei de causa e efeito, tal como a dor pela expiação e prova vividas, que são oportunidades, não castigos. Estas impelem-nos à modificação de comportamentos e de pensamentos, pelo que gradualmente vão gerar mais harmonia íntima. Ao se desconhecer a relação entre nós (seres espirituais), Deus, e as Suas leis fica muito mais difícil de raciocinar com lógica em torno de tudo isto.

A prática do bem não deve ser realizada pela ideia de obediência a Deus, e menos ainda com o intuito de se alcançar benefícios futuros, no Céu, no Além, no Paraíso, num destino prometido. E também não deve ser praticado porque é socialmente esperado, ou gerador de status quando anunciado ou praticado. O bem deve ser realizado com recato, indulgência e agindo-se sem alarido social ou propaganda face às ações realizadas. Deve ser tal como disse Jesus: “quando tu deres esmola, que não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita” (Mateus 6:3).

A Deus, o Pai, nós nos ligamos por amor. Na verdade, as coisas são tal como se refere no livro de Carlos A. Baccelli, “A Coragem da Fé”, pelo Espírito de Bezerra de Menezes:

O problema do homem não é com Deus, mas, sim, com o próximo. Não é pela falta de fé que o homem tem fracassado; aliás, desde os primórdios, ele tem procurado reverenciar o Criador, na exteriorização de sua religiosidade natural…” [2]

Indulgência no dicionário significa bondade (que desculpa o que é censurável ou importuno) e perdão (atenuação da gravidade) de uma falta. No livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, é dito:

Sede indulgentes, meus amigos, porquanto a indulgência atrai, acalma, ergue, ao passo que o rigor desanima, afasta e irrita.” (…) “Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis com severidade senão as vossas próprias acções e o Senhor usará a indulgência para convosco, como de indulgência houverdes usado para com os outros.”

Há uma diferença clara entre a definição do dicionário e a sua prática, pois há uma relação entre o exercício do bem indulgentemente praticado e a geração de bem-estar. Há uma intermediação em favor de quem atua por outros que acontecerá pela aplicação das leis morais (seguindo os ensinamentos de Jesus), mas também pela ajuda dos guias espirituais, que assistem ao nosso comportamento face a outros. A cadeia de ligações entre terrenos e espíritos desencarnados pode, também por aqui, expressar os efeitos da ação indulgente em favor de quem assim age. É a intermediação dos bons Espíritos relativamente a quem se dedica ao bem pelo bem. E até que ponto será esta intermediação útil?

Respondamos questionando: quantos indivíduos doentes, deprimidos ou obsidiados por Espíritos não encarnados gostariam de ter alívio de seus males?

Quantos destes males têm origem na ausência de perdão face a faltas cometidas pelos agora atormentados pela dor?

Quantos não desejariam uma intermediação para que essa dor fosse atenuada?

E se é “A cada um segundo as suas obras”, a prática do bem também traz resultados em favor de quem faz essa obra pelo seu semelhante. Mas não é só em favor do alívio da dor que a intermediação se manifesta, pois também pela inspiração ela se apresenta. Afinal, quantos sábios (de Espíritos não encarnados) e outros apoios baseados no saber podem ajudar à nossa busca de soluções?

No Livro dos Espíritos, item 459, questiona-se: “Influem os Espíritos em nossos pensamentos e em nossos actos?”, a resposta é categórica: “Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que, de ordinário, são eles que vos dirigem.”

Posto isto podemos afirmar que compreender as leis de Deus e a sua existência suprema ajuda-nos a moldar o comportamento, a ganhar ferramentas para fazermos melhor uso do livre-arbítrio, a dar mais amor ao próximo e a defendermo-nos de novas quedas morais.

No Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, é referido: “Julga-se o poder de uma inteligência por suas obras. Como nenhum ser humano pode criar o que a natureza produz, a causa primária é, portanto, uma inteligência superior à humanidade.”

Compreender Deus e aceitar esta realidade, pelo menos até que a compreensão se faça mais abrangente sobre esta Verdade é um exercício de humildade importante para o trabalhar das nossas qualidades humanas. Ao fazê-lo estamos a percorrer um melhor caminho de evolução. Estamos a preparar-nos para sermos indulgentes, para vivermos melhor e de forma mais sensata as leis do amor, compreendendo Deus.

Afinal, tal como referido por Francisco Cândido Xavier, no livro “No Mundo Maior”, pelo Espírito André Luiz: “Não somos criações milagrosas, destinadas ao adorno de um paraíso de papelão. Somos filhos de Deus e herdeiros dos séculos, conquistando valores, de experiência em experiência, de milénio a milénio.” [3].

 

Referências

[1] DENIS, Léon, Joana D’Arc, 19ª edição, FEB, 1999.

Título: Joana D’Arc, Médium

[2] BACCELLI, Carlos A., pelo Espírito Bezerra de Menezes, A Coragem da Fé. Didier, 2002.

[3] XAVIER, Francisco, orientado pelo Espírito André Luiz, No Mundo Maior. 5º livro da colecção, A Vida no Mundo Espiritual, FEB. Recuperado de   http://bvespirita.com/No%20Mundo%20Maior%20(psicografia%20Chico%20Xavier%20-%20espirito%20Andre%20Luiz).pdf.