Câmara de eco

 

“A outra, a pessoa que, por enquanto, consideras perfeita e capaz de completar-te, é tão necessitada quanto o és tu. Na ilusão, adornas-lhe o carácter, para descobrir, mais tarde, o ledo engano. Conserva puro o teu afecto em relação ao próximo e não te facultes sonhos e fantasias”

(Joanna de Ângelis)

Há uns anos atrás Mark Zuckerberg, criador e patrão da rede social online Facebook, teve uma nova ideia: ampliar a sua base de utilizadores simultaneamente que procurava evangelizar o acesso à informação via Internet. Fazia-o pela criação de condições de acesso livre à rede, nomeadamente junto de povos com dificuldades económicas. Para cumprir este objetivo, Zuckerberg conseguiu a adesão de várias empresas tecnológicas, tais como a Nokia, Samsung e a Erikson. A descrição do projeto está em www.internet.org. À partida a ideia parece boa, porém, há quem chame a este esforço de tecno-colonialismo. É neste contexto que chega a ser paradoxal, senão mesmo trágica, a visita de Zuckerberg em 2019 a uma sala de aula de Chandauli, uma pequena aldeia da India rural. O intuito era o de promover a sua ideia e vê-la em funcionamento. Na visita à escola constatou que os 40 alunos que ali se encontravam estavam sentados no chão. Faltava um pouco de tudo, e além das mesas e cadeiras, também não havia casas de banho nem electricidade. Disse o professor que havia mais 1,4 milhões de escolas semelhantes, mas aquela era uma das melhores. Zuckerberg visitou de seguida o centro de computadores, espaçoso e arejado, com as suas duas dúzias de computadores portáteis, contudo percebeu que a Internet estava em baixo, pois em Chandauli era comum não haver electricidade. Não sabemos o que Zuckerberg terá pensado, mas dado o contexto podemos perguntar-nos sobre se o acesso à Internet, nomeadamente ao Facebook, é indispensável para aquelas pessoas? Estará Zuckerberg totalmente equivocado? Estamos nós equivocados quando nos centramos numa perspetiva única, ignorando ou ostracizando as perspectivas que são diferentes da nossa? A informação que acedemos na Internet está cada vez mais personalizada para cada um. À primeira vista até parece uma coisa boa, mas por detrás disso há severas consequências. A personalização imposta por algoritmos, tal como os do motor de pesquisa Google, ou dos sistemas de recomendação da Amazon, ou ainda os usados pelas redes sociais como o Facebook, dão-nos acesso a conteúdos com base nos históricos das nossas visitas na Web, de pessoas consideradas semelhantes a nós (pessoas ligadas a nós em grupos, tais como redes sociais, e que acederam a informação e a itens semelhantes aos nossos) e de centenas de outros critérios, tais como por exemplo o geográfico. Quer isto dizer que o ponto de vista sobre a informação que acedemos, na sua essência, é semelhante àquele que já conhecíamos. Esta situação alimenta em cada um de nós as mesmas ideias, os mesmos pontos de vista, os mesmos interesses. Por consequência, vamos desconhecendo e rejeitando cada vez mais a diferença. A par disto, e para facilitar o trabalho dos algoritmos na sua entrega de resultados personalizados, nomeadamente publicidade, os semelhantes são agrupados em grupos que consomem e acedem a coisas que se assemelham. Resultado: vamos tendo opiniões cada vez mais conformes, ou seja, idênticas aos do nosso grupo, tribo, vizinhança de convívio. E com isto, vamos ganhando uma resistência crescente à diferença e a acomodar pontos de vista distintos dos nossos. Porquê? Porque somos cada vez menos confrontados com a novidade, com a surpresa, com pontos de vista que confrontam a nossa forma de ver a realidade. Esta rejeição graças à conformidade que vamos cristalizando torna-nos mais intolerantes e impermeáveis ao que é ou pensa diferente de nós, vamos perdendo sentido crítico. Sim, estamos a ser agrupados, cada vez mais encostados a um fazer de coisas que não sabemos bem porque as fazemos. Tudo isto sem que nos demos conta do que está a acontecer. Ao sermos enjaulados em bolhas onde convivem pessoas, informação, produtos e publicidade, tudo emparelhado por critérios de semelhança, e não de valor e benefício mútuo. Vamos sendo peças de um relógio marcado pelo interesse, mais ao menos esperado, por quem faz negócios não éticos com base nestes fatores, ou passa ideias com base no medo (pois sabe do padrão que nos alimenta – a rejeição da diferença). Somos ativos para quem ameaça a partir da perspetiva da rejeição da diversidade e que alimenta a intolerância crescente contra aquilo que difere do que é esperado ou conhecemos. Tudo isto faz crescer o défice democrático, a pobreza de argumentos autorreguladores que nos podem ajudar a defender da frustração. O destreino da exposição a perspectivas contrárias reduz a nossa capacidade de vencer a perturbação mental e ao ganho de autoconhecimento, pois fechamo-nos no nisso eu, um eu que não olha para si a partir dos outros, e vice versa. A falta de liberdade no acesso a informação nova, sem que nos demos conta, gera uma cognição empobrecida pela redução de estímulos. Em suma, há uma redução na riqueza e na capacidade de interpretação da realidade [1]. Pusemos a nossa vida e desenvolvimento humano dentro de uma câmara de eco. Posto isto, a questão que se coloca é de que forma projetos como o Internet.org de Mark Zuckerberg [2] [3] pode camuflar, alimentar, ou contribuir para as ameaças descritas. Esforços que se dizem de bem, mas que se traduzem na coleta de mais dados sociais que alimentam a algoritmia atual de personalização, é plantar uma árvore ou fazer-nos confundir a árvore com a floresta? O egoísmo tecnológico e económico galga terreno em detrimento do que é básico para a maioria da população do planeta. Tal como outros, também este projeto enaltece as autoestradas da informação, mas negligencia a construção de caminhos para mais solidariedade. Afinal, também Zuckerberg vive mergulhado na sua própria câmara de eco. Ele observa os outros pela perspetiva do seu próprio mundo, tal como cada um de nós, mais ou menos fechados no próprio egoísmo – tantas vezes sem que nos demos conta por défice de trabalho íntimo para o contrariarmos. Mas isto não se passa somente neste exemplo. As câmaras de eco estão na vida de muitos de nós e elas não são nada de novo. De certa forma elas já nos foram apresentadas por Max Weber (1864 – 1920), alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia e proeminente pensador do indivíduo e da sociedade. Pelo menos explicou-nos o que seria a sua antítese. Weber achava que na relação social cada indivíduo deveria ter a preocupação de saber aquilo que o outro pensa, isto no sentido de se buscar a concordância de ideias, mesmo quando em alguns momentos pudesse haver divergência, pois isso seria salutar para estreitar ainda mais o relacionamento. Penso que será correto afirmar que Webber considerava que a divergência era uma oportunidade e não um problema. Porém, hoje, as tecnologias procuram fazer exatamente o contrário, pois, promovem a separação do diferente para emparelhar o que é semelhante. Assim, em vez de gerar diálogo e aceitação de novos pontos de vista entre diferentes, presta-se a alimentar o egoísmo e a desistência, dada a nossa incapacidade para lidar com a frustração, ou com as dificuldades dos outros. Essa desistência leva, quase que inevitavelmente, à xenofobia, ao racismo, aos conflitos, aos problemas das diferenças de género, religiosos, políticas. Temos de crescer como indivíduos e como sociedade, temos de usar as ferramentas de desenvolvimento pessoal, temos de sair da infantilidade espiritual em que vamos vivendo. A “domesticação” do pensamento “conforme” a partir do enviesamento sobre o “valor” dos “dados” do mundo digital, cada vez mais atordoado pelo mergulho na dita big data, da inteligência artificial e no machine learning, continua a emparelhar-nos em “câmaras de eco”. Somos como bolas de sabão de várias cores, em que todos olham para todos, mas poucos se escutam, se misturam e se veem para lá da sua bola de sabão. A tecnologia é-nos útil, se dela fizermos utilidades. Aceder à novidade, ou seja, à forma de mudarmos de perspetiva, de sermos surpreendidos e confrontados com a diferença, é cada vez mais difícil. E quando acontece gera crescente predisposição à rejeição dessa diferença. Isto, ora pela falta da educação que Max Weber considerava importante, ora pelo entorpecimento cognitivo que é alimentado pelos mecanismos de acesso à informação e aos itens globais. Jesus, que falava em caridade e em ação para incluir, alertou-nos sobre como nos apoiarmos no desenvolvimento humano. Apontou o caminho. Hoje usamos outras palavras, tais como sentido de equipa, de comunidade, apoio social, autoconhecimento, responsabilidade social, etc. Mas tudo está no cerne de nos responsabilizarmos pelo outro e por vigiarmos o que dizemos, pensamos e fazemos para que façamos todo o bem que esteja ao nosso alcance. Está mais do que na hora de fazermos melhores escolhas: mais materialismo e egoísmo, ou mais responsabilidade individual e coletiva para mais solidariedade entre equipas, mais caridade e indulgência, mais amor como forma de inteligência. Note-se que a inteligência face à divergência escuta e assimila o que dela há de valoroso, mas não esmaga o outro. O indivíduo inteligente encara as novas ideias como uma oportunidade de enriquecimento, não como uma ameaça. O indivíduo inteligente não quer amealhar à custa dos outros, para engavetar tornando os outros mais incapazes de alcançarem a harmonia. Jesus trouxe a Boa Nova, que é a novidade sobre o que sabíamos sobre o provir, sobre o facto de a vida continuar para lá da vida do corpo. O espírito é finito (teve um início), mas é eterno (ninguém conhece o seu fim), pelo que volta a nascer num novo corpo, numa nova existência, tantas vezes quantas precise na sua ascensão a Deus – ou seja, a mais bem-estar para si e para os outros. Jesus disse tudo isto e muito mais. O Espiritismo, cientificou os ensinamentos de Jesus, dando-nos novas ferramentas para nos desenvolvermos intimamente. Cabe a cada um usá-las de forma inteligente e amorosa para sair das suas câmaras de eco. Referências [1] Recuperado de https://www.researchgate.net/publication/273456985_Emotions_and_Recommender_Systems_A_Social_Network_Approach. [2] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Internet.org. [3] Recuperado de https://www.theguardian.com/science/2016/sep/01/mark-zuckerberg-spacex-explosion-africa-internet.