Evoluir a inteligência

 

A dimensão do pensamento de Jesus na Terra é a representação do que devemos almejar como seres inteligentes, pelo que ganha significado a frase “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”

 

Durante muitos anos considerou-se que a inteligência era sinónimo de um QI (Quociente de Inteligência) elevado, equivalendo-lhe, por exemplo, uma forte capacidade de resolução de questões científicas, competências técnicas acima da média, ou ser competitivo no emprego.

A partir dos anos 80 (séc. XX) vários estudos apontaram para novas facetas. Primeiro surgiu a Inteligência Emocional (QE), que denota a capacidade de compreender as interações sociais e de geração de empatia pelos outros. Posteriormente surgiu a Inteligência Espiritual (QS) [1], que capacita o indivíduo para a compreensão do propósito da sua vida e para perspetivar o todo a partir da parte onde se encontra, tal como explicitado no estudo realizado pela Física americana Danah Zohar.

O QE e o QS são, portanto, facetas de uma inteligência mais sensível. Porém, hoje chega-se ao final do percurso escolar/académico sem que se levantem questões sobre o propósito da vida, ou sobre qual o nosso papel face ao outro, ou mesmo sobre qual o significado de sermos seres espirituais.

Somos todos treinados para não ver, para sermos conformes, para não nos questionarmos. Aceitamos a realidade material sem cuidarmos de saber o porquê do imaterial que nos envolve – a realidade espiritual. Enfim, não somos educados para desenvolver as nossas facetas de inteligência sensível ao nível do QE e do QS.

Apesar do inestimável valor da inteligência sensível há uma forte negligência para com esta educação do ser. O foco mantém-se essencialmente no reforço e valorização do QI, pese embora a crescente atenção para com o QE, nomeadamente após o seu estudo e divulgação pelos livros do psicólogo e investigador Daniel Goleman. E ainda que a intelectualidade e a técnica sejam importantes, sem o desenvolvimento da empatia, da ética e dos instrumentos de aprimoramento moral, a capacidade de expansão racional (QI) será sempre limitada no âmbito do todo que é o ser humano na sua existência.

Os sinais deste desequilíbrio são visíveis na sociedade moderna, onde a ganga egótica (ego doente – associado ao comportamento autocentrado e egoísta) tem conduzido as pessoas a uma inteligência que não as protege delas próprias.

O ego que nos domina faz-nos ignorar que somos mais do que a ponta de um iceberg – que de forma metafórica podemos dizer que representa a consciência. Se somos mais do que desejos e satisfação de estímulos de prazer, e de imediatismos promovidos pelo ego, é porque somos mais do que a ponta desse iceberg. Pese embora o ego ache o próprio iceberg, no seu todo.

No entanto, o todo, o Iceberg, é o Self (a alma), que é representada pelo inconsciente. É aqui que (de forma por vezes dormente) reside a mola que nos expande, que nos solicita à ligação ao outro, ao comportamento afetuoso e empático, que nos leva à busca do propósito.

A este propósito Allan Kardec escreve assim no livro “A Génese” [2]:

Não é somente o desenvolvimento da inteligência que falta aos homens, é a elevação do sentimento” (item 6, p. 372).

O progresso intelectual realizado até aos nossos dias nas mais vastas proporções, é um grande passo, e marca a primeira fase da humanidade, mas só, é impotente para a regenerar. (…) Só o progresso moral pode assegurar a felicidade dos homens sobre a Terra.” (item 16, p. 378).

É neste equilíbrio, entre racionalidade e sensibilidade, que a inteligência é convocada numa evolução “saudável” do espírito, ou seja, do ser espiritual que somos. Porém, os indivíduos das religiões ao intelectualizarem o que deveria ser burilado pelos afetos equivocaram-se no seu papel. Estes, ao manterem os afetos a uma distância “segura” deram predominância ao ego sobre o Self levando esta narrativa religiosa à educação das pessoas.

Como resultado, as religiões acabaram mergulhadas no mundismo dos significados semióticos, ou seja, do que é simbólico, distante do quotidiano das pessoas e das suas necessidades, nomeadamente enquanto seres espirituais. E se o corpo necessita de alimento e exercício, também o espírito necessita de ser energizado e nutrientes, de forma concreta e tangível, não por meio da metafísica que ninguém, na verdade, entende.

Os indivíduos das religiões deram primazia ao materialismo tornando-o no marcador de compasso de práticas e comportamentos [3], em vez de se centrarem no ser.

A intelectualização do indivíduo, sem cuidar do seu lado sensível, conduz ao silenciamento dos sentimentos. Fazê-lo é ser cúmplice de uma fuga ao afeto do outro, ao sentido ético das ações, é meter-nos num molde que negligencia a própria personalidade.

Desta forma, ainda que a intelectualização implique profundidade de conceitos, ela também pode significar afastamento do indivíduo da profundidade de si mesmo. E as consequências refletem-se ao nível da sua saúde e bem-estar, onde o uso de “máscaras” e de adornos, i.e., o status, os círculos de poder, o materialismo e as “coisas”, a satisfação de prazeres, apenas tentam esconder um ego doente.

Facto é que o consumo químico de medicamentos não para de crescer, tal como o número de doenças (ditas) psíquicas. O reflexo disto está, por exemplo, no imparável aumento de diagnósticos de depressão, estados de ansiedade e da clamorosa taxa de suicídio, nomeadamente em países mais ricos – materialmente.

Afinal, a intelectualidade desprovida da reflexão pessoal gera neurose, tal como debatido na psicologia analítica da escola Junguiana (de Carl Gustav Jung) [3]. Estas são questões com forte impacto na saúde da pessoa, pelo que são demonstrativas do mau desenvolvimento das facetas de inteligência sensível do indivíduo.

A compreensão dos ensinamentos de Jesus e as leis morais que regem a vida do espírito são uma das ferramentas primordiais para o desenvolvimento da inteligência sensível, pois é nessas facetas que de forma mais vincada se expressa aquele compêndio de conhecimento.

Esta realidade está explicitada na Codificação Espírita, de Allan Kardec. Nestas obras cientifica-se e debate-se as consequências religiosas e de propósito da vida de tudo o que diz respeito à nossa existência material e espiritual no contexto da criação de Deus. Deus, que nada faz de escusado, nem a dor o é, se entendida pela dimensão certa e que inclui o da continuidade da vida após a morte do corpo, o mesmo é dizer, que já vivemos antes. Nada na nossa vida é escusado, tudo tem um propósito. Se o percebemos saberemos viver com mais bem-estar, tanto na abundância como na escassez. Saberemos dar e receber.

Neste contexto, o exemplo de vida de Jesus, o Espírito mais evoluído que habitou a Terra, e que poderemos designar por “Ser Humano Integral” deve fazer-nos pensar. Ao interpretarmos a sua existência e o seu comportamento para com outros podemos ir mais longe sobre a importância da inteligência sensível. Um exemplo de estudo disto mesmo pode ser encontrado nas figuras opostas de Animus e Anima, tal como formulado por Gustav Jung e usado na Psicologia analítica no âmbito das formas de expressão do ser masculino e feminino, respetivamente. Ambas as facetas existem em cada um de nós.

A expressão do Animus, que representa a força moral de Jesus, está bem patente na sua mensagem. Esta chega aos nossos dias como a mais edificante e completa lição sobre como deve o ser humano viver na sua caminhada de evolução espiritual. De facto, a presença de Jesus na Terra é inigualável, a ponto de ter sido a partir da sua existência que o tempo se separou em “Antes de Cristo” e “Depois de Cristo” [3].

Da Anima, temos a expressão da ternura maternal, em que Jesus é um expoente máximo dessa faceta da inteligência sensível. Jesus, que tratou todos os enfermos e desvalidos, também afrontou os costumes do poder machista vigente. Fê-lo com tal sabedoria que conseguiu elevar a mulher ao patamar do homem, fazendo-a ocupar o lugar que lhe está atribuído na criação.  

Recordemos que naquele tempo a mulher era considerada apenas para serviço do homem, pelo que não tinha qualquer relevância, nem lugar de direito na sua existência [3]. Mais, o conceito de perdão era totalmente desconhecido até ser introduzido pelo Cristo, que o distinguiu da vingança e explicou que a justiça do Pai é inexorável.

Jesus nasceu da carne como todos nós, era um ser humano como todos os demais a esse nível. No entanto, a sua evolução espiritual, o seu ser estava muito para lá de todos e de cada um de nós. Jesus já tinha habitado outros mundos, onde perfez a sua evolução, tal como o fazemos nós agora, reencarnando em vidas sucessiva.

A justificação desses outros mundos está, por exemplo, nestas palavras de Jesus: “Há muitas moradas na casa de meu Pai” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Allan Kardec, cap. III) [4], e que pode ser encontrada nesta anotação de João:

Não se turbe o vosso coração. – Crede em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa do meu Pai; se assim não fosse, já vo-lo teria dito, pois vou para vos preparar o lugar; e depois que me tiver ido e que vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (S. João, cap. XIV, v. 1 a 3).

Jesus já tinha vivido a plenitude da evolução espiritual pelo que percecionava as debilidades do ser humano. Sabia qual era o percurso esperado para a evolução do espírito. Sabia que quem não compreendesse a vida do espírito iria ter maiores dificuldades para enquadrar a aprendizagem moral e, assim, se desenvolver enquanto ser. É este testemunho e ensinamentos que podemos encontrar nos evangelhos.

No Evangelho Segundo o Espiritismo, que sintetiza aqueles testemunhos, temos a oportunidade de melhor compreender a mensagem do Cristo a partir das explicações (interpretações) dos Espíritos que se comunicaram na obra de Kardec.

E se Jesus agia para ensinar e ajudar o ser humano na sua caminhada evolutiva, não poderia contrariar as leis de Deus. Neste contexto, analise-se, por exemplo, o episódio da “Mulher Adúltera”, relatada no evangelho (João VIII: 3 a 11) da seguinte forma:

Então, lhe trouxeram, os escribas e os fariseus, uma mulher que fora apanhada em adultério, e a puseram no meio, e lhe disseram: Mestre, esta mulher foi agora mesmo apanhada em adultério, Moisés, na lei, mandou apedrejar a estas tais. Qual é a vossa opinião sobre isto?

Diziam, pois, isto, os judeus, tentando-o, para o poderem acusar. Jesus, porém, abaixando-se, pôs-se a escrever com o dedo na terra. E como eles perseveraram em fazer-lhe perguntas, ergueu-se Jesus e disse-lhes: Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra. E tornando a abaixar-se, escrevia na terra. Mas eles, ouvindo-o, foram saindo um a um, sendo os mais velhos os primeiros. E ficou só Jesus com a mulher, que estava no meio, em pé. Então, erguendo-se, Jesus lhe disse: Mulher, onde estão os que te acusam? Ninguém te condenou?

Respondeu ela: Ninguém, Senhor. Então Jesus lhe disse: Eu tampouco te condenarei; vai e não peques mais.”

Atendendo a estes factos podemos questionar-nos sobre como terá conseguido Jesus desmobilizar aquelas pessoas que se preparavam para o apedrejamento? Fê-lo recorrendo à sua inteligência, que em termos de harmonia entre o seu QI, QE e QS era total.

O que se preparava com aquele evento não era somente o apedrejamento. O que os escribas e judeus fariseus planeavam ao levarem a mulher adúltera à presença de Jesus, onde se iria vingar a honra do marido, era apanhar Jesus em falta para com a lei mosaica. Ao pensarem que Jesus tentaria impedir o apedrejamento engendraram a forma de o colocar numa situação em que a sua ação lhes desse argumentos para a sua condenação. Porém, enganaram-se. Porquê? Pela coerência do pensamento de Jesus.

Primeiro, agindo de acordo com os seus ensinamentos. Ele nada fez contra as leis de Deus em causa – sim, nada fez (jamais) pelo recurso ao milagre (ao maravilhoso, no sentido de exceção às leis naturais e de ciência na Terra). Por outro lado, não condenou, advertiu chamando os presentes à própria consciência.

Segundo, narram diversos intérpretes deste texto que, ao escrever no chão, Jesus grafava a marca moral do erro de cada um que O observava, fazendo que recordassem a sua própria imperfeição.

Por exemplo: ladrão, adúltero, caluniador… [5]. Fá-lo ao mesmo tempo que diz: “Aquele dentre vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra”. O primeiro nome escrito no chão foi do marido, que Jesus sabia ser adúltero, tal como muitos dos presentes. E assim, um por um, começando pelo marido, todos abandonaram os seus intentos. Como nenhum deles estava isento de erros, não sentiram ter autoridade moral para julgar ou condenar. A consciência de cada um, que ninguém apaga, provavelmente sob a ação magnetizadora do pensamento de Jesus, enquanto instrumento de auxílio, terá contribuído para aquele desfecho.

Terceiro, porque a construção do pensamento de Jesus lhe permite compreender profundamente as leis de Deus, que adverte, mas não condena: “Estás perdoada, mas não voltes a errar”.

Deus, não sendo «castigador», não condena ninguém, mas deseja a melhoria de todos. Para isso tem na lei de causa e efeito o instrumento de aperfeiçoamento e estímulo à melhoria. Se adulteramos essas leis, então é por elas que iremos ser «acordados», não através de um castigo, mas sim pela oportunidade de por elas nos darmos conta das nossas faltas e assim nos corrigirmos.

A dor que a vida nos traz é uma das facetas dessa oportunidade pela qual a vida nos detém na expetativa que aceitemos as dificuldades e de por elas, de forma resiliente, lutarmos pela mudança interior. Assim, o objetivo da aprendizagem é gravar na nossa alma a informação moral que fará com que não caiamos novamente (a nível moral) no mesmo erro. É por esta razão que Jesus recomenda à «mulher adúltera» que não volte a errar.

Com aquela ação Jesus consegue não desrespeitar a lei mosaica, não ser incoerente com os seus ensinamentos e conduzir cada um ao profundo da sua consciência. Resultado, surpreendeu-se o grupo de escribas e fariseus com a solução de desmobilização e perdão conseguida, tanto, quanto nós ainda nos surpreendemos pelo alcance do Seu entendimento.

Jesus é o “Ser Humano Integral”, cuja harmonia entre inteligência racional e sensível é total. Uma boa razão para que a frase “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” possa figurar na abertura de alguns livros de ciência, nomeadamente no domínio da cognição, da psique e da área comportamental.

Referências

[1] ZOHAR, Danah, QS – Inteligência Espiritual. Best Bolso, Brasil, 2012.

[2] KARDEC, Allan, A Génese, Hellil, 2018.

Título: A Génese

[3] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Refletindo a Alma: A Psicologia Espírita de Joanna de Ângelis, LEAL, 4ª edição, 2016.

Título: Refletindo a Alma, a Psicologia de Joanna de Ângelis

[4] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Hellil, 2014.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo
[5] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Luz do Mundo, Cap. 13. LEAL, 9ª edição, 2005, pp. 91-96.