Haverá algum sentido para a vida?

 

“Não somos criações milagrosas, destinadas ao adorno de um paraíso de papelão. Somos filhos de Deus e herdeiros dos séculos, conquistando valores, de experiência em experiência, de milénio a milénio.”

(“No Mundo Maior”, Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito André Luiz)

É reconhecido que as espécies evoluem, que o ser humano evolui, tudo está em mutação. Falta compreender que o agente que caracteriza essa renovação é o espírito, cuja individuação é o garante da continuidade entre diferentes existências. A individualidade do espírito não se perde ou esgota face ao colapso do corpo (à morte). A sua evolução concretiza-se ao longo de diversas reencarnações a que está sujeito com o fito do desenvolvimento moral e intelectual.

Para se entender a governança deste sistema – corpo e espírito– é necessário compreender a perspetiva religiosa do sentido da vida, a qual encerra a nossa natural ligação a Deus. Natural por que somos resultado da Sua criação, e religiosa por que mantemos uma religação ao criador. Notemos que se Deus é a causa primeira de todas as coisas e o princípio inteligente, significa que antes de Deus era o nada. E como o nada não dá origem a seja o que for, sem Deus não haveria o que conhecemos e o que somos.

Por consequência, a nossa ligação a Deus deriva da Sua vontade e não carece de uma religião terrena, todavia, isto não significa que se deva negligenciar as religiões terrenas caso se deseje militar em alguma delas. Afinal, todas elas têm uma missão nobre. O que por vezes distorce a sua mensagem e missão são os seus próprios interlocutores, pelo que o erro não está na mensagem. Quando muito os seus dignatários têm de se a atualizar à luz do conhecimento da vida espiritual, que nos envolve, ou seja, do facto natural de sermos seres espirituais.

Assim, acima da prática está o uso da razão, a compreensão do sentido da vida sabendo que temos uma dimensão espiritual e outra corpórea. E sabendo-se isso, como se viver a religação a Deus, ou seja, em respeito (não em temor), pelo que nos é posto no exercício da vida. Um exercício que se faz tal como Jesus ensinou.

Jesus falou para todos e nunca se referiu à criação de uma religião. Falou para quem o quis escutar e seguir pelo exemplo moral. Nunca se posicionou como líder de um grupo ou de uma religião que devia ser seguida. O importante não era a sua pessoa, mas sim a mensagem, o ensinamento. Porém, ao longos dos séculos, começando em Constantino (séc. IV depois da morte de Jesus), os ditos religiosos transformaram-no num objeto de culto esquecendo-se do essencial. Coisas semelhantes foram feitas por outros religiosos de outras ditas religiões ou práticas.

A palavra cristianismo, sugerida por Lucas, foi criada com o único fim de identificar os que seguiam os ensinamentos de Jesus e não como forma de identificar uma religião. Esta só sugeriria com Constantino, séculos depois da morte do Cristo (Constantino Magno, imperador romano, 272 d.C. – 337 d.C.).

São os ensinamentos que devem ser apreendidos e seguidos, pois explicam de que forma se aplicam as leis de Deus sobre a existência do espírito e como é que por estas estas nos propomos à evolução e à melhoria do bem-estar do ser. Assim, e independentemente da abordagem religiosa, o relevante é a mensagem e o uso da razão, para que se possa compreender que somos seres espirituais a viver experiências num corpo físico com vista ao aprimoramento do espírito.

O estudo das obras da codificação espírita de Allan Kardec contribui para este fim. Elas são a prova filosófica, de ciência e de consequências religiosas que possibilita essa compreensão. Afinal toda esta revelação se inicia com Moisés, contínua com Jesus e é concluída com o Espiritismo. Pelo seu estudo encontramos a resposta sobre de onde vimos, o que estamos cá a fazer e para onde vamos. Mas o ser humano, na sua grande maioria, persiste na miopia da vida sobre a forma de olhar a vida. Porém, vai progressivamente compreendendo que a longevidade na vida está associada a sentimentos e hábitos saudáveis que nos mantém a mente sadia.

Estudos recentes revelam que viver mais, está associado a fatores alimentares e ao exercício físico, mas sobretudo à abundância e firmeza de laços de amizade ao longo da vida, os quais nos podem ajudar a manter mais positivos, em interação e apoiados para vencermos o stress e as amarguras da vida [1]. Manter uma vida espiritual equilibrada, seja pela prática do yoga, meditação ou pela oração ajuda igualmente à longevidade da saúde do corpo, e, por conseguinte, da vida. Uma vez mais laços, mas desta feita com o plano espiritual, com os Espíritos que nos inspiram, e, por esta via, limpando o nosso mental da toxicidade (de pensamentos) que tantas vezes nos envolve [idem].

O sentido da vida passa assim pela aquisição de saberes sobre como agir em favor de nós próprios e do próximo, nomeadamente de forma caridosa e indulgente (ajudando sem esperar recompensas), compassiva (gerando proximidade e entendimento sobre o problema dos outros), solidária (cooperando) e misericordiosa (perdoando e compreendendo, sem exigências). Passa ainda pelo saber amar e pelo saber viver com propósito. Na verdade, aquele que melhor souber preservar os seus sentimentos, mantendo-se emocionalmente saudável e alegre, mais fácil lhe é viver. Aquele que der mais vai receber mais, pelo que há que abandonar a ganga egoística e egotica que nos conforma.

Ao aprendermos a viver com este sentido, aprendemos a nos libertar do ego doente e da ignorância que nos amarra a misticismos, ou que nos mantém em busca de respostas nos outros e nas suas coisas, em vez de as procurarmos em nós. O amor que assiste ao sentido da vida liga-nos aos outros, afasta-nos do pessimismo, da subjugação aos pensamentos que alimentam uma baixa autoestima, culpa, medos e angústias. O objetivo é libertarmo-nos que de tudo isto e irmos melhorando o nosso diálogo interior e a nossa sintonia mental. Para isto importa a sintonia espiritual, o sentimento de gratidão a vontade de aprender e de se saber estar humilde, bem como a oração – que não é o mesmo que rezar, como quem repete frases sem dar uso ao coração e fazer do raciocínio o instrumento que lhes encontra o sentido.

Não sejamos, pois, um caixote de lixo mental alimentado por um psiquismo doente. Aprendamos a viver na matéria e com a matéria, mas como seres espirituais que somos. Respeitemos o corpo e a sua saúde. Vençamos vícios e a preguiça que nos afasta do poder de decisão livre e sem amarras ao medo, à culpa, à sombra que habita em todos nós. Respeitemo-nos na matéria relativizando a importância dos bens materiais, tanto na escassez como na abundância.

Compreender o sentido da vida é também entender que a morte não termina aquilo que cada um é. Nós somos raciocínio, moralidade e espiritualidade, a par de um corpo. Isto significa que o nascimento traz consigo os saberes adquiridos em vidas anteriores, bem como a saúde física equivalente à forma como cada um soube preservá-la na vida pretérita.

A vida não é compaginável com o conceito de envelhecer, pois somente o corpo envelhece, não o todo, que é o ser humano e que inclui a sua realidade espiritual. Viver é fortalecer-se. Não há o fim da vida. Não há o olhar para trás, mas sim para o porvir. Não é relevante a herança material a deixar na Terra, mas sim o comportamento moral e os saberes partilhados.

Talvez possamos resumir o sentido da vida a três conceitos: compreender, amar e progredir. Quem compreende vence a ignorância que desfoca a verdade espiritual que está subjacente à vida. Quem ama vence o orgulho, a vaidade, o egoísmo, vence o ciúme, a cupidez, a inveja, e, vence a dor, porque a compreende distinguindo-a do sofrimento. Ao passo que a dor nos ensina, o sofrimento impele-nos a agir, pois dele temos de nos libertar. Se a dor é uma oportunidade para nos libertarmos da ignorância de comportamentos que a veio a gerar, o sofrimento, que paraleliza, convoca-nos a largar a esfera cómoda da lamentação e da perca de coragem. Isto é progredir, pois está incluído naquilo que cada um dá a si e de si, aos outros, logo, à vida [2]. Neste trabalho íntimo está o equilíbrio entre o ego e o Self, entre a parte e o todo, entre o egoísmo e a empatia (pelo outro). Neste burilar é importante trabalharmos no nosso processo de individuação, em vez de nos centramos na individualização – no qual a sociedade se tem vindo aceleradamente a meter [3].

À individuação corresponde a organização do ser espiritual a par com a sua realidade material, o que pressupõe a aprendizagem do amor. E se a pessoa que ama é auxiliada pelos que igualmente amam, então progredir pela vivência do amor é igualmente compreender o sentido da vida. Um sentido que implica o coletivo e não apenas o individual, que implica a caridade e a inteligência, em vez do fechamento.

Interpretar esta forma de viver é pôr em prática os ensinamentos de Jesus, aos quais é relevante podermos associar o conhecimento da mediunidade e a compreensão sobre a interceção entre os planos da vida física e espiritual, tal como tratado nas cinco obras da codificação Espírita produzida por Allan Kardec. Mas isto não significa que este conhecimento espiritual esteja apenas acessível a quem tem uma raíz religiosa cristã. Uma vez mais, a religião (terrena) é a prática do indivíduo, a ciência que expõe e explica o sentido da vida a partir da perspetiva do ser espiritual que somos é universal e diz respeito a todos.

E muitos são aqueles que o percebem exprimindo-o no seu quotidiano, tal como se depreende neste poema de Antero de Quental (1842-1891).

Evolução

(A Santos Valente)

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

Tronco ou ramo na incógnita floresta…

Onda, espumei, quebrando-me na aresta

Do granito, antiquíssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo

Na caverna que ensombra urze e giesta;

Ou, monstro primitivo, ergui a testa

No limoso paul, glauco pascigo…

Hoje sou homem – e na sombra enorme

Vejo, a meus pés, a escada multiforme,

Que desce, em espirais, na imensidade…

Interrogo o infinito e às vezes choro…

Mas, estendendo as mãos no vácuo, adoro

E aspiro unicamente à liberdade.

QUENTAL, Antero de, Poesia completa: 1842-1891, Publicações Dom Quixote, Lisboa 2001

 

Referências

[1] in Revista Visão, 01 de março de 2018, citando a Time inc.

[2] XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo, orientado pelo Espírito André Luiz Mecanismos de Mediunidade.

[3] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.