O microscópio vietnamita

 

«No Vietname tanto os pais como as crianças estão constantemente sob a observação de uma espécie de “microscópio vietnamita”. Se uma criança é expulsa ou desiste da escola, se um rapaz é atraído para um gang ou se uma rapariga fica grávida sem que se case, fazem cair a vergonha não só sobre eles próprios, como também sobre a sua família».[1]

O estudo científico sobre o “microscópio vietnamita” tipifica os valores que emergem da rede social formada pela comunidade envolvente. Estes valores parecem ser bastante diferentes dos definidos por L.J. Hanifan (1879-1932), pedagogo em escolas rurais nos EUA e o primeiro a fazer uma utilização conhecida do conceito «Capital Social».

Ainda que hoje este conceito esteja fortemente associado à identificação do valor económico extraível das relações em rede, na sua origem referia-se “às coisas intangíveis [que] são importantes para o quotidiano das pessoas: boa vontade, amizade, solidariedade, interacção social entre os indivíduos e as famílias que compõem uma unidade social… Uma pessoa apenas existe socialmente se deixada a si próprio… Mas se ela entrar em contacto com o seu vizinho, e estes com outros vizinhos, haverá uma acumulação de capital social, que pode imediatamente satisfazer suas necessidades sociais e que podem ostentar uma potencialidade social suficiente para a melhoria substancial da comunidade, para as condições de vida de toda a comunidade. A comunidade como um todo se beneficiará pela cooperação de todas as suas partes, e o indivíduo vai encontrar nas suas associações as vantagens da ajuda, da solidariedade… bem como seu vizinho no clube.” [2]

Ao contrário do benefício extraível de uma comunidade, tal como definido por Hanifan, o que sobressai a partir da observação do «microscópio vietnamita» é a punição, a exclusão e o estigma, em suma, o preconceito. Razões socioculturais poderão ajudar a explicar este facto, mas não chega. O orgulho de uns em relação à maledicência de outros sobrepõe-se ao sentimento de caridade e de amor para com as faltas de terceiros. E se os limites da compreensão sobre o que é a vida ditarem que o nascimento é o ano zero da existência de cada um, ou seja, que não vivemos antes, e que a vida se esgota com a morte do corpo, então tudo se resume à glória do presente. Mas de facto, não é assim que a vida funciona.

Quando nascemos já somos uma história de tendências e vínculos do passado. Por eles vamos estar sujeitos à vivência de provas e expiações, ou seja, de consequências da forma como vivemos antes, pelo que com o nascimento já somos portadores de um receituário de causas e efeitos [3]. Assim, ao nascermos de novo temos a oportunidade de nos modificarmos. Para sabermos como o fazer temos os ensinamentos de Jesus.

E se já vivemos antes, construímos laços, pelo que é importante compreender o sentido desses laços que nos ligam uns aos outros. Eles desenham a rede social e espiritual que nos envolve e cuja matriz interlaça diversos espaço-tempo – os laços do presente que se entrelaçam com os do passado, uns encarnados outros apenas como espíritos, tudo na mesma matriz do presente. E a família é um exemplo dessa matriz, que pela lei de causa e efeito pode voltar a juntar as mesmas pessoas, em relações e graus de parentesco distintos e ao longo de vidas sucessivas. Isto, com vista a aprendermos a nos amarmos, a nos conciliarmos uns com os outros, mas também, a podermos estar com aqueles que amamos ou nos amam para sermos ajudados ou ajudarmos à impulsão.

Por esta razão, não há um Céu para justos e um inferno para faltosos. A vida dá-nos formas de exercitar a mudança íntima por meio de dificuldades, no sentido de compreendermos a dor que já causámos e de oportunidades, para que aprendamos a não criticar, a não negar a ajuda, a não invejar o alheio, a perdoar. Todos vivemos, apenas, as responsabilidades que nos dizem respeito. Não há qualquer vantagem ou desvantagem de uns em relação a outros.

O caminho é o da libertação da ignorância, pelo que ninguém fica para trás, ou em eterno estágio de punição, pelo que também não deveremos fazê-lo com os que nos rodeiam. Cabe a cada um assumir as responsabilidades das suas faltas e imperfeições e ser indulgente para com a dos outros. Saber perdoar é libertar-se.

Porém, para se entender esta realidade, que por norma nos parece novidade, temos de perceber os ensinamentos de Jesus, que são uma bússola face à nossa realidade espiritual, e não uma lista de conduta ditada por religiosos. Sobretudo, há que compreender que somos uma herança de nós mesmos, de vidas passadas.

O espírito é o envelope de informação e inteligência do ser humano, é a sua individuação, a centelha que anima o corpo pela expressão da vontade. E é ao ritmo da apreensão das realidades da vida do espírito e no respaldo da elevação moral, que vamos evoluindo.

O espírito, não tem género, é o corpo que lhe atribui a polaridade, pelo que nasce ora como homem, ora como mulher visando sempre o seu aperfeiçoamento. Habita ainda outros espaços do universo, não apenas a Terra. Tal como afirmou Jesus, “há muitas moradas na casa de meu Pai”. E é também por isto que se afirma que o espírito é com o vento, “ninguém sabe de onde vem e para onde vai”.

Neste sentido, atributos da nascença, tais como, o estatuto social e económico, a beleza, os defeitos, as deficiências, a precaridade, ou outros, mais não são do que instrumentos de apoio à nossa evolução. Por vezes são eles os meios que nos impedem de cair, mais uma vez, no erro pela debilidade ético-moral. Estes instrumentos surgem, por exemplo, por meio de provas, tais como os da beleza – que a maioria das vezes nos parece uma vantagem, outras vezes são uma responsabilidade, por exemplo, a riqueza material face aos demais, ou ainda, uma expiação, por exemplo, a precariedade, a doença, etc. Todavia, o propósito é sempre positivo, visa a nossa evolução, contudo, pelo nosso livre-arbítrio e face à lei de causa e efeito, nem sempre facilitamos o nosso próprio caminho – e é aí que as dificuldades nos parecem ser “castigo de Deus”.

Em síntese, o estigma e o preconceito são obstáculos a retirar do caminho de desenvolvimento a que estamos todos destinados. Aqueles que promovem a realidade do “microscópio vietnamita” vivem equivocados sobre o seu papel na sociedade, na sua rede, na família, para consigo mesmo.

Negar a crítica, a quezília, o mal dizer, a punição, são um bom princípio para precaver a dor – a de cada um, e aquela que podemos infligir a outros. A lente adequada para o “microscópio vietnamita” é a que permite ver e interpretar a realidade espiritual que nos envolve. Ela remete-nos para a observação atenta das nossas relações, bem como para o contexto de provas e expiações a que estamos sujeitos. Pela sua observação (promovendo-se o autoconhecimento) elas podem revelar comportamentos padrão, tendências e os mecanismos de convite à mudança, começando pelo perdão, pela solidariedade, pela indulgência.

Deus criou uma lei perfeita e ela não se baseia na punição face à falha, mas sim na solicitação de responsabilidades que resultam das decisões de cada um ao longo de vidas sucessivas.  Perante a falha há que ser paciente, persistir na melhoria e compreender que ninguém é vítima de outros, mas sim de si mesmo – por comportamentos pretéritos, mas que isso também não é razão para se viver culpas, nem segurar a dor, mas sim de nos irmos melhorando. O esforço pela mudança é o foco.

A dor também é um instrumento para que nos detenhamos e nos questionemos sobre o que somos e como queremos ir. Não há castigo, mas sim consequências, pelo que se Deus não castiga pelas leis que criou, por que razão haveremos nós de o fazer? Quem castiga é a ignorância e essa pode e deve ser vencida. Sobretudo há que não guardar a angústia, a desesperança, o medo, ou deixar que o orgulho e o egoísmo nos dominem. Estes são venenos para alma, que se quer animada, resiliente e com fé para avançar, ou seja, quer-se fiel ao propósito de gerar o bem-estar, o do próprio e dos outros.

Ao lermos “O Livros dos Espíritos”, de Allan Kardec compreendemos o que é o espírito, de onde vem e para onde vai. E ao lermos o “O Evangelho Segundo o Espiritismo” encontramos a explicação, pelos Espíritos, sobre o significado dos principais ensinamentos de Jesus.

Allan Kardec é o pseudónimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804 – 1869), pedagogo francês e discípulo do reformador educacional suíço Johann Heinrich Pestalozzi. Kardec, autor das cinco obras da codificação da doutrina Espírita que sistematizam o conhecimento sobre as relações entre o mundo corpóreo e espiritual, sendo um homem de ciência, usa esse método para trazer para a escrita o que os Espíritos comunicaram a partir das suas questões e organização da informação.

Estas leituras abrirão o primeiro lenho nas esferas da nossa ignorância e orgulho humano. Esse lenho fica ainda mais fundo se nos informarmos sobre a miríade de trabalhos científicos realizados desde o final do século XIX até aos nossos dias neste contexto. Estes trabalhos evidenciam a existência de uma realidade complementar à da matéria: a realidade espiritual. Diversos indivíduos da ciência têm investigado e publicado diversos trabalhos neste domínio, nomeadamente pela mão de William Crookes, Russel Wallace, Lodge, Aksakof, Myers, Hodgson, Lombroso, entre tantos outros, nomeadamente contemporâneos e em diversas universidades, em particular na área da saúde.

O convite é, pois, ao estudo sobre o que somos e para onde vamos, compreendendo de onde viemos, ou seja, como aqui chegámos para melhor agirmos.

Referências

[1] ZHOU, M. e C. L. BANKSTON (1996). Social capital and the adaptation of the second generation: the case of Vietnamese youth in New Orleans, in A. Portes (org.), The New Second Generation, NY, Russell Sage Found., pp. 197-220.

[2] Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Capital_social.

[3] Recuperado de http://www.forumespirita.net/fe/lei-de-causa-e-efeito/lei-de-causa-e-efeito-16303/#.V-frbvkrLcc.

Título: Psicologia do Evangelho