Espírito – comando da vontade

 

“(…) tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até ao arcanjo, que também começou por ser átomo; admirável lei de harmonia em que o vosso acanhado espírito ainda não pode apreender o conjunto!” (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos”, questão 540, p. 272) [1]

 

Rumi, jurista, teólogo sufi da Pérsia (séc. XII), um dos maiores poetas de todos os tempos, comparado a Dante e a Shakespeare, foi um dos grandes filósofos e místicos do Islão. Enquanto sufista acreditava que o espírito humano é uma emanação do divino e que toda a aventura do homem é um só esforço ruidoso desse espírito para se reintegrar em Deus. No seu livro “Poemas Místicos-Divan de Shams de Tabriz”, em “A Evolução da Forma” [2] pode ler-se:

Desde que chegaste ao mundo do ser,

Uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.

Primeiro foste mineral;

Depois, te tornaste planta,

E mais tarde, animal.

Como pode ser isto segredo para ti?

Finalmente, foste feito homem,

Com conhecimento, razão e fé.

Contempla teu corpo – um punhado de pó –

Vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,

Decerto hás-de regressar como anjo;

Depois disso, terás terminado de vez com a terra,

E tua estação há-de ser o céu.

 

Note-se que o poema é do séc. XIII, mas o trabalho de Allan Kardec, sobre o Espiritismo, no qual se refere que “tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até ao arcanjo”, ser de meados do séc. XIX, deve fazer-nos pensar. De facto, as referências à evolução do Espírito e à inteligência, pela qual o indivíduo compreende a sua ligação a um todo, a Deus, estão presentes no inconsciente do ser humano desde sempre. Isto, apesar de muitos de nós ainda se manter ignorante sobre a nossa realidade dual, a corpórea e a espiritual, tal como refere Kardec no livro “Obras Póstumas”: “A vida espiritual é a vida normal; a vida corpórea é uma fase temporária da vida do Espírito, que durante ela se reveste de um envoltório material, de que se despe por ocasião da morte. O Espírito progride no estado corporal e no estado espiritual. O estado corpóreo é necessário ao Espírito, até que haja galgado um certo grau de perfeição. Ele aí se desenvolve pelo trabalho a que é submetido pelas suas próprias necessidades e adquire conhecimentos práticos especiais.” [3]

O perispírito é o meio que permite ao Espírito transmitir a sua herança (entre existências) à nova forma de vida corpórea. Ou seja, além do corpo físico e do espírito, há o perispírito, ou corpo fluídico, que é o organizador estrutural de tudo quanto se adquire, tanto a nível moral, como intelectual, no percurso de evolução do espírito. Na vida corpórea, o perispírito é o instrumento pelo qual o espírito se comunica com o mundo, sendo que a aquisição e desenvolvimento das faculdades humanas se perfazem “no contacto do Espírito com a matéria, cujo produto resultante, de um lado, foi a constituição do perispírito, e, do outro, a absorção pelo primeiro do conhecimento das leis de Deus” (p.14) [4]. Quer isto dizer que é pela aquisição de saber e pelo exercício da vontade que o espírito dá forma ao perispírito e apreende as leis de Deus.

A relação entre espírito e perispírito não se dá apenas na vivência terrena, pois perdura para lá da morte do corpo, no plano espiritual. Para facilitar a compreensão recorremos à analogia do balão e do ar. O ar não pode ser tocado, apalpado. Por isso não é possível manipulá-lo com as nossas mãos, ou dar-lhe forma. Mas se o colocarmos dentro de um balão já é possível senti-lo e criar formas com ele. Analogamente, também o espírito usa um corpo perispiritual, através do fluido universal, a partir do qual tem um meio de locomoção, adaptação e criação da forma.

Neste sentido, e atendendo ao meio onde o espírito se encontre, seja na Terra ou para lá dela, o meio é usado para concretizar uma forma e imprimir a sua ação. Se assim não fosse seria ar. A ligação é concretizada pelo pensamento, ou seja, pela vontade impressa pelo espírito.

Na Terra, o perispírito é o meio pelo qual se dá a injunção da vivência do espírito no corpo transportando informação das vivências anteriores (em resultado da lei de causa e efeito), a qual é transmitida ao corpo celular pela ligação do perispírito ao corpo, célula a célula. Contudo, não é somente na Terra que se perfaz a evolução espiritual, tal como referido por Jesus: “Não se turbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Há muitas moradas na casa do meu pai; se assim não fosse, já vo-lo teria dito, pois vou para vos preparar o lugar; e depois que me tiver ido e que vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos retirarei para mim, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (João, XIV:1-3) [5].

Isto significa que: “A Casa do Pai é o Universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam no espaço infinito, oferecendo aos Espíritos desencarnados estações apropriadas ao seu adiantamento.” [6] Tudo procede visando-se a evolução do espírito, tal como se compreende nesta passagem de Kardec em “Obras Póstumas”: “Sendo insuficiente uma só existência corporal para que adquira todas as perfeições, retoma um corpo tantas vezes quantas lhe forem necessárias e de cada vez encarna com o progresso que haja realizado em suas existências precedentes e na vida espiritual. Quando, num mundo, alcança tudo o que aí pode obter, deixa-o para ir a outros mundos, intelectual e moralmente mais adiantados, cada vez menos materiais, e assim por diante, até à perfeição de que é suscetível à criatura.” [7]

E é neste contexto que surge a diversidade de origens e destinos dos espíritos trazidos à humanidade, pela qual se perfazem as diferentes categorias de espíritos conhecidas, ou seja, de estados de evolução moral e intelectual. Isto mesmo se pode constatar pelos inúmeros exemplos de inspiração (perceção espiritual, pela assistência de espíritos afins e amigos) de artistas, humanistas, cientistas, religiosos, mas também de pessoas comuns. Trabalhos erguidos no recato e apoiados na inspiração e dedicação aos outros por parte de muitos que nos acompanham a partir do plano espiritual, tal como Rumi testemunha a partir do conteúdo impresso em mais de 26 mil poemas espirituais.

São vastos os testemunhos sobre a compreensão da existência da alma e do propósito da vida, tal como pode ser percebido no livro “QS – Inteligência Espiritual” [7], da física americana Dahn Zohar. Nele, a autora faz referência a um físico, que escreve sobre o encadeamento da vida: “Esse foi o momento decisivo. A terra sólida havia surgido. Até esse momento, o Universo se tornara progressivamente mais sólido, inerte e dividido em partes. Dessa matéria mais fria e mais densa, porém, estruturas mais complexas e delicadas podiam ser formadas, as primeiras rochas, água, cristais e compostos químicos. Em seguida, surgiram criaturas vivas e, finalmente, criaturas dotadas de alma. Começara a longa e lenta ascensão da existência para a sua fonte”.

Precisamos todos de (re)aprender a ver, tal como nos mostra este físico. Precisamos de ver pelos olhos da razão usando como óculos as lentes do “coração”, da intuição, ou seja, da sensibilidade.

Tal como referido na questão 607-a, de “O Livro dos Espíritos”, sobre se a alma foi o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, a resposta refere: “Não dissemos que tudo se encadeia na natureza e tende à unidade? É nesses seres, que estais longe de conhecer, que o princípio inteligente se elabora, se individualiza a pouco-e-pouco, e se ensaia para a vida, como o dissemos. É de qualquer modo um trabalho preparatório como o da germinação, na sequência do qual, o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito…”. [1]

E tal como elaborado por José Lázaro Boberg sobre a evolução: “O Espírito é a individualização do princípio inteligente que, com o despertar da consciência, e já de posse do livre-arbítrio, começa a sua longa caminhada de aprendizagem, pelos caminhos da evolução” (p. 28). [8]

Precisamos todos de (re)aprender a ver, tal como nos é mostrado por este indivíduo da ciência. Precisamos de ver pelos olhos da razão, mas a partir de óculos com as lentes do “coração”, ou seja, da intuição, da sensibilidade.

 

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Livro dos Espíritos. 1.ª Edição, Edições Hellil, 2017.

Título: O Livro dos Espíritos

[2] TABRIZ, Shams, Místicos-Divan, A Evolução da Forma. Tradução e selecção de José Jorge de Carvalho, página 66.

[3] KARDEC, Allan, Obras Póstumas. FEB, 2005.

Título: Obras póstumas

[4] NOVAES, Adenáuer M.F., Psicologia e Mediunidade, 1ª ed., Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2002.

[5] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo. Cap. 3, item 1, 1.ª Edição, Edições Hellil, p. 59, 2014.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo

[6] Recuperado de https://evangelhoespirita.wordpress.com/capitulos-1-a-27/cap-3-ha-muitas-moradas-na-casa-de-meu-pai/diferentes-estados-da-alma-na-erraticidade/.

[7] ZOHAR, Danah, QS – Inteligência Espiritual. Best Bolso, Brasil, 2012.*

[8] BOBERG, J. Lázaro, Filhos de Deus – O amor incondicional, EME, 2006.

Título: Filhos de Deus - O amor incondicional

* NOTA: palestra em que menciona o trabalho de QS de Danah Zohar: Divaldo Franco Conferencia na ONU – Perdão e Reconciliação. Conferência proferia na sede da Organização das Nações Unidas em New York, USA em 23 de março de 2023. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=IEB-vDj-ZjY