Espaço-tempo: a gratidão como propulsor do amor

 

“A vida vai torta \ Jamais se endireita \ O azar persegue \ Esconde-se espreita \ Nunca dei um passo \ Que fosse correcto \ Eu nunca fiz nada \ Que batesse certo”.

(Xutos e Pontapés)

Quantos de nós já não cantarolou aquele refrão em modo de lamento à sorte? De facto, em poucas palavras a letra da canção diz muito sobre a forma como vemos os desafios da vida. Umas vezes culpamos o azar, outros a má proteção da Providência, mas poucas vezes refletimos sobre o facto de a responsabilidade ser apenas nossa. No entanto, não é fácil perceber a dimensão dessa responsabilidade, nem que somos a causa da nossa própria dor pelo comportamento pretérito – não vivemos somente uma vez.

Não somos herança dos genes dos nossos pais, mas da forma como vivemos em existências pretéritas, à semelhança do que será o nosso futuro como resultado do nosso comportamento presente. A nossa atitude ético-moral é impressa no nosso inconsciente e o resultado é transmitido célula a célula ao nosso corpo físico a cada nova reencarnação a partir do nosso corpo fluídico ou periespírito (que liga o Espírito ao corpo físico).

Cada reencarnação é uma nova oportunidade para evoluímos, pelo que quando a vida vai torta e nenhum passo bate certo devemos questionar-nos, não para nos culparmos, mas para corrigirmos o que possa ser uma tendência de comportamento ainda presente em nós. Se a vida não acontece, não é por azar, nem por castigo, mas talvez seja o compasso de espera que a vida nos permite ter, para que olhemos para dentro de nós e corrijamos o que, em nós, gera o erro.

Não há predestinação. Somos nós que decidimos se nos vamos melhorar (temos livre-arbítrio). Ao melhorarmos o comportamento ético-moral estamos a aproveitar a oportunidade da nossa reencarnação para aliviar os efeitos face às causas do pretérito. Estamos a modificar o nosso espaço – tempo.

Foi o Físico alemão Albert Einstein quem trouxe ao mundo o conceito do contínuo espaço-tempo, em que a massa de um corpo altera a noção de tempo no espaço que ocupa. Se aplicarmos aquela noção à nossa existência no corpo físico e espiritual podemos encontra aqui um paralelo conceptual.

O corpo físico tem a massa que conhecemos e o perispírito, ainda que num estado mais etéreo e fluídico, também tem massa. As diferenças de massa e suas características agem de forma distinta sobre o espaço em que se encontram, ou seja, na Terra e no plano espiritual, respetivamente. Talvez, também por isso, a noção de tempo no plano espiritual seja distinta da percecionada na Terra (nota: partindo de uma explicação simplista, mas não obtusa, ainda que a partir de premissas um pouco grosseiras para facilitar a abordagem).

Se visto no referencial Terra, o tempo é um contínuo e sem interrupção. Por exemplo, pessoas que referem vivências relativas a vidas que não correspondem à sua existência atual, estão a fazer uso do contínuo espaço-tempo. São os casos de “déjà vu”, sensações de estranheza em locais conhecidos e dos relatos de vidas passadas, nomeadamente as estudadas pela ciência, por exemplo, a partir de trabalhos de regressão de memória.

Mas se o tempo for visto na perspetiva do plano espiritual, em que a massa daqueles corpos implica uma deformação distinta do espaço, então o tempo tem uma dimensão distinta da conhecida na Terra. Este facto é comprovado nos diálogos com os Espíritos através de um médium, tal como sucede na Casa Espírita. Os diálogos de doutrinação, que visam o consolo e esclarecimento dos Espíritos que se manifestam neste contexto, mostram que muitos destes desconhecem o seu estado – que estão vivos (espírito) mas que o seu corpo está morto (embora de achem nele). Vivem ainda a ideação temporal da vida no corpo, pois desconhecem a marcação do seu novo tempo dada a alteração do referencial (Terra vs. Plano Espiritual).

Todas as ações inteligentes têm um efeito inteligente, ou seja, não há o acaso ou o «azar», nem vidas que, ainda que comecem tortas, não possam vir a se endireitar, a melhorar. Neste sentido, as palavras de Jesus que referem “Bem-aventurados os aflitos” (Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, cap. V) permitem refletir sobre o porquê das dores sentidas no presente.

Bem-aventurados os aflitos” [1] significa que se a aflição está presente na nossa vida, então a expiação ou a prova está a acontecer. Estamos a ter uma oportunidade de inculcarmos na alma a informação que nos faltava, para nis modificarmos. Pois, já teremos causado a dor que sentimos a nós mesmos (ex., por um vício) ou a outros (ex., pelo mal contra praticado). A dor leva-nos à oportunidade de reflexão e de humildade face ao orgulho do nosso ego. A dor ajuda à correção íntima. E se isso já está a acontecer, então devemos agradecer, não porque dói, mas pelo que poderemos vir a alcançar a partir dali.

Claro que tudo isto só faz sentido se percebermos a lei de causa e efeito no contínuo das vidas sucessivas do ser espiritual que somos. O bem-aventurado é aquele que reencarna, que tem a coragem de voltar à vida no corpo e viver as dificuldades que todos conhecemos. Viver não é fácil. Há o contexto de paixões, de tensões e tentações. Há a dor pela dor dos outros, pelas injustiças e a má índole de tantos. Há a nossa luta para contrariar isso e nos melhorarmos Viver a reencarnação não é tarefa fácil, nomeadamente quando olhada a partir da perspetiva do espírito antes deste entrar de novo na vida terrena, no corpo. Por isso se diz “Bem-aventurado os aflitos”, pois estão no processo de evolução.

É por esta ordem de ideias que temos de continuar a nos bater pela mudança interior, pela melhoria dos nossos relacionamentos com aqueles que nos rodeiam, pela harmonia, pois tudo faz parte de um enorme sistema de interações que visa a mitigação de efeitos para que o bem supere o mal.

A vida pelo seu somatório de exercícios de melhoria conduz-nos ao amor. Se o soubermos usar aproximamo-nos de uma existência mais equilibrada e descentrada da vontade egoísta que o ego adoecido impõe. Saberemos então agir com mais altruísmo e indulgência, em oposição ao intuito de querermos ganhar algo em troca, ou de desejarmos ultrapassar o outro. A nossa atenção deve estar centrada no nosso autoconhecimento, no nosso Self (Eu maior) – que nos liga aos outros, não na competição com o outro, ou naquilo que ele tem.

O médium Espírita brasileiro Divaldo Pereira Franco, na apresentação do tema “Psicologia da Gratidão”, numa conferência a 15 de Março de 2012, referiu que a gratidão é o propulsor do amor. Se nas horas difíceis conseguirmos compreender que não foi o azar que nos bateu à porta, mas sim o momento de viver a expiação, ou seja, de vivermos mais uma lição ou prova, então diremos obrigado.

Divaldo exemplifica-o com a questão da ingratidão dos filhos para com os pais e para com os amigos afirmando que “a ingratidão é um cancro que devora a humanidade em transição”. Enfatiza esse ponto referindo que “a gratidão é como um bálsamo que luariza a criatura humana“. Enquanto sentimento de respeito ao bem que se recebe, é um sentimento profundo do qual a humanidade muito necessita. Ela restaura o Evangelho. E de facto, o ser humano tem muitos motivos para agradecer: agradecer o bem que aconteceu, o mal que não aconteceu e o mal que aconteceu, pois que este contém significado educativo. Tudo o que acontece é para o bem do homem.

E porque Deus nunca nos dá mais do que aquilo que somos capazes de suportar para superar os nossos desafios, confiemos quando a dificuldade nos bater à porta. Se está a acontecer é porque já somos capazes de vivenciar esse momento e de evoluirmos um bocadinho mais ao vivenciar essa dificuldade. Vivamos então com sabedoria, aceitação e coragem cada lição, prova, ou a conquista. Nunca dar lugar, em nós, ao medo, mas antes à prudência. Nunca segurar em nós a angústia, mas sim o recolhimento para a oração, para a concentração, ou para a meditação. Façamos mediante o crer que temos em nós, mas façamo-lo para nos ligarmos aos que nos inspiram, não ao(s) que nos perturba(m).

Porém, sejamos pacientes, pois há uma considerável distância entre compreender e conseguir viver esta verdade. Aos poucos podemo-nos ir aproximando da compreensão e da ação. Podemos ser mais atentos e solidários. Podemos ser menos materialmente ambiciosos ou vaidosos. Podemos crescer para lá do nosso orgulho, ciúme ou inveja. Podemos ser melhores e saber perdoar quem ainda não conseguiu alcançar. Sobretudo, podemos perdoar-nos quando não conseguimos alcançar, pois temos sempre novas oportunidades para continuar a tentar. Se agirmos assim, outros também o farão e então conseguiremos acelerar a cadeia de mudança que faz da gratidão o propulsor do amor, independentemente do espaço e do tempo em que tal se dê

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Publicações Hellil.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo