A mediunidade e os indivíduos de génio

 

O poeta e o profeta para receberem a inspiração, devem entrar num estado superior, onde seu horizonte intelectual é alargado e iluminado por uma luz mais alta.” Platão

O génio, sob muitos pontos de vista, é uma das formas da mediunidade. A genialidade tem-se expressado na humanidade a partir da inspiração que comumente se diz transcendental. A missão dos indivíduos de génio é esperada, tal como nos faz notar Léon Denis na sua magistral obra “No Invisível – Espiritismo e Mediunidade” [1]. É com base nessa obra que tratamos este tema. Para compreendermos o indivíduo de génio temos de perceber que a vida se desdobra em múltiplas existências. É o espírito que as vive de forma sucessiva e evolutiva, o qual habita corpos distintos a cada existência terrena (reencarnação). Nós, hoje, somos um exemplo disso mesmo: seres espirituais a viver mais uma experiência num novo corpo. E é neste processo lento e de aquisição de aptidões intelectuais e morais que o espírito se prepara para poder ter uma participação como indivíduo de génio, ou seja, inspirado ao ponto de se distinguir, largamente e de forma elevada, de todos os outros. Os outros somos nós, seres nesta mesma construção, pelo que nos cabe o esforço de alcançar o génio. Isto também significa que sem o trabalho de aprimoramento, sem o esforço realizado ao longo de vidas sucessivas – de diversas reencarnações, não haveria genialidade. Isto porque, a inspiração, que é providenciada por espíritos de elevada condição (moral e intelectual), não bastaria para permitir a genialidade do indivíduo. Este tem de viver mais do que uma vez para que pelo processo de aprendizagem e transformação íntima possa criar condições de aderência entre o que é inspirado e a sua predisposição mental e moral. O indivíduo tem de ter adquirido no passado sabedoria suficiente e por meio de pacientes e seculares estudos, e sacrifícios, para que possa desenvolver em si a sensibilidade do génio. Ele tem de ir sendo capaz de vencer a ilusão de bem-estar dos prazeres mundanos estimulados pelo ego (mergulhados no orgulho, no egoísmo e nas vaidades egoticas), para se ir predispondo às influências mais elevadas e à condução da vontade pelo seu Self (alma) – que o liga à inspiração de forma mais lúcida. Resulta de tudo isto um forte sentido de humildade, pois o trabalho de progresso em favor de outros que cabe ao indivíduo de génio resulta do seu próprio esforço, mas sobretudo da inspiração. Quando nos julgamos criadores só somos, afinal, cocriadores. E se assim não fosse o mais provável seria nem sequer sermos capazes de criar. Os primeiros indivíduos de génio conhecidos são os grandes iniciados do pensamento no mundo antigo: Orfeu, Hermes, Krishna, Pitágoras, Zoroastro, Platão, Moisés, mas também os grandes profetas hebreus: Isaías, Ezequiel, Daniel. Estes últimos, que aconselharam os reis de Israel sobre os abusos de poder e a necessidade de consolar o povo oprimido e aflito. Ideais que são imperiosos retomar nos dias de hoje, em particular em regiões do globo onde tudo começou. Posteriormente veio João (o Batista), reencarnação de Elias, e que preparou seus irmãos para a revelação do Cristo. Depois veio Jesus. Todos foram inspirados ao procurarem o recolhimento, tal como fez Platão no cume do Himeto, ou Maomé no monte Hira, ou Moisés no Sinai, ou Jesus no Monte das Oliveiras, onde se comunicava com o Pai, em lágrimas e em prece. O profetismo ou mediunidade sagrada inicia-se em Israel com Moisés. Mediunidade que é afirmada na Bíblia em diversos textos sob todas as formas e graus, tal como abordado por Léon Dinis em “No Invisível”. A vida de Jesus é o expoente máximo do uso daquela faculdade do espírito na realidade humana. Jesus que a este propósito refere (tal como feito em inúmeras outras ocasiões):
Não vos preocupeis absolutamente com o que tereis de dizer e não penseis absolutamente nisso; pois o espírito vos ensinará, nessa hora mesmo, o que deveis dizer. Não sereis vós que falareis, mas o Espírito de Vosso Pai que falará em vós (Mateus, X:19 e 20)”
Avançando no tempo podemos citar outros indivíduos de génio. A título de exemplo, na idade média é de referir Cristóvão Colombo, o Infante D. Henrique, ou Joana d’Arc – sobre quem Léon Denis classifica como sendo uma das almas mais elevadas e inspiradas depois de Cristo. Contemporaneamente são incontornáveis os nomes de Madre Teresa de Calcutá, Gandhi, ou Nelson Mandela, entre outros. A mediunidade, por via do apoio à inspiração, revela-se em todas as frentes, desde o humanismo à ciência, e, de forma perentória, às artes. Platão dizia em “Diálogos de Ion e do Ménon” que:
O poeta e o profeta para receberem a inspiração, devem entrar num estado superior, onde seu horizonte intelectual é alargado e iluminado por uma luz mais alta.”
Não são os videntes, os profetas ou os poetas que falam; mas é deus que fala através deles.
Neste contexto, é sabido que os ditos heterónimos de Fernando Pessoa não o são, pois cada um é o simples resultado da comunicação espiritual pela qual aqueles espíritos se revelaram por Pessoa. É a designada psicografia. O mesmo sucedeu com Victor Hugo e William Shakespeare, todos eles bem conscientes da origem da sua inspiração. E sobre a genialidade não podíamos deixar de referir Camões. Exemplos semelhantes chegam-nos pelos testemunhos de Mozart, Beethoven ou Chopin, ou ainda Haydn, Hendel, Gluck, entre tantos outros. A lista no campo das artes é vastíssima, bem como os seus testemunhos sobre as formas de inspiração, as condições em que criavam as suas obras. Em comum, a genialidade, o recolhimento e o sentido de prece ou sossego íntimo durante o qual o processo de cocriação se dava. O conhecimento sistematizado pelo Espiritismo, a partir das obras da codificação produzidos por Allan Kardec, também este um expoente entre os indivíduos de génio, vieram a permitir compreender a intuição, a inspiração e a mediunidade. Estes fenómenos passaram a poder ser distinguidos, estudados e usados como instrumentos, seja no apoio ao nosso quotidiano (i.e., intuição), de trabalho (i.e., inspiração), ou de cura ou consolo (i.e., pelo recurso ao magnetismo humano – mediunidade). O Espiritismo esclarece que a intuição e a inspiração é um fascinante processo de solidariedade intelectual entre o ser humano e os espíritos, pelo recurso da informação mobilizada no nosso inconsciente – ou seja, aprendizagem adquirida. Esclarece ainda que a mediunidade, enquanto ciência, articula a ligação entre dois mundos, o espiritual e o terreno, pelo que pode ser analisada e usada, nomeadamente, a nível terapêutico. Ajuda igualmente a erguer a Casa Espírita, que é a nascente que de forma segura brota conhecimento, que convida à instrução, ao amor e à ação voluntária, sempre caritativa, e que realiza uma tutoria responsável sobre o exercício educado da mediunidade. Porém, o trabalho produzido pela mediunidade dos indivíduos de génio não pode ser reduzido à reprodução mecânica de ideias inspiradas. Tal como referido, o que lhes é proporcionado é o alargamento do seu horizonte de pensamento buscando nestes a bagagem granjeada ao longo de vidas sucessivas. No espectro da genialidade daqueles que soubera usar a ligação entre estes dois mundos em favor de todos os outros podemos incluir inúmeros nomes. Citemos dois espíritas brasileiros contemporâneos que por meio da psicografia redigiram centenas de livros e realizaram uma obra humana e espiritual gigantesca: Francisco Cândido Xavier (Chico Xavier) e Divaldo Pereira Franco. Os homens de génio são médiuns em grau e forma diversas. Muitos de nós também o somos, mesmo sem sermos indivíduos de génio, pois todos somos emissores e recetores de pensamento sensível. Estes pensamentos que apelam à nossa sensibilidade para a sua receção são-nos endereçados por espíritos que nos acompanham na jornada da vida. Uns fazem-no por razões benévolas (i.e., que nos inspiram ao progresso, a solucionar questões, à criatividade, à ciência, etc.), outros fazem-no à dimensão dos sentimentos de baixa condição moral em que ainda vivem mergulhados e, por vezes, reagindo ao comportamento que tivemos para com estes no passado (somos, por estes, alvo das consequências da lei de causa e efeito). Por conseguinte, não perceber isto é desperdiçar um enorme potencial de desenvolvimento individual e coletivo, mas também negligenciar formas de buscar mais bem-estar e o propósito da vida, que urge esclarecer. É no silêncio, no recolhimento junto da natureza, na quietude do pensamento, na meditação, na prece e no desligamento das coisas que nos excitam o sensitivo (pelo ruído e pelas paixões), que o indivíduo busca inspiração. Condições estas que permitem receber do invisível as forças que animam a evolução, as ideias que ajudam à transformação, que apoiam o nutrir da calma e a coragem que apoia a decisão discernida. Com os profetas de Israel prepararam-se as mentes e os espíritos para as revelações trazida pelo Cristo. Ele falou-nos sobre a continuidade da vida e da responsabilidade de cada um, face ao seu comportamento moral. E foi com base nestes ensinamentos que a igreja fundada por Paulo se ergueu e se manteve por três séculos. Esta era uma igreja de ensino espiritual. Depois vieram os concílios, nomeadamente o de Niceia, por ordem de Constantino, e, por consequência, as emendas à forma de se entender os ensinamentos de Jesus. A igreja institucionalizou-se e tornou-se um instrumento político. Perdeu o seu sentido espiritual. Transformou Jesus em Deus. Converteu a mãe de Jesus (e de seus irmãos e irmãs) em Virgem, revirando todo o sentido da nossa realidade sexual – que é natural e não repelente, embora deva ser educada, como todas as paixões humanas. Tudo isto está devidamente tratado pela ciência e explicado na obra de Kardec por meio das explicações dos Espíritos que por ela se comunicaram. E para se compreender partes que fizeram o todo, que ainda é o hoje de algum tumulto religioso pela fraqueza moral de muitos ditos religiosos, recomenda-se vivamente a leitura do livro “Labirintos do Ódio, da Traição e da Dor”, de Arnaldo Costeira, pelo Espírito Doménico Pompeu. Pompeu testemunha acontecimentos dramáticos decorridos na Idade Média, no decadente período feudal no séc. XIII, numa aldeia nas margens de um afluente do rio Tibre junto a Assis, e pelos quais se toma contacto com a ação de Francisco de Assis [2]. As religiões terrenas de origem cristã têm de retornar ao Cristianismo primitivo, aquele que fazia o empoderamento do indivíduo sobre as suas responsabilidades humanas e espirituais, aquele Cristianismo que norteia o indivíduo no propósito da vida e que não diz que há equívoco nos outros, nas outras religiões ou estados de conhecimento – tudo na criação de Deus está em harmonia. A cada um é dado segundo as suas obras e no sentido do que lhe é necessário viver, a cada reencarnação, com o objetivo do seu bem e evolução. Nesta forma de espiritualidade, onde cabem todas as religiões, formas de pensamento e saberes, reconhece Deus como causa primeira e inteligente de todas as coisas – de outra forma seria o nada a gerar o nada, o que é impossível. A espiritualidade que falta hoje ao homem é equivalente ao seu vazio existencial. Por isso confunde o Cristo com Deus, o materialismo com as formas de conquista de bem-estar e a caridade com “processo” de dar. Uma espiritualidade esclarecida vê no Cristo a reencarnação de um espírito de elevada envergadura, a maior desde que o mundo é mundo, pelo que vê em Jesus o exemplo do Ser Integral. Por isso Ele é o nosso melhor modelo e guia, independentemente da religiosidade ou competência científica de cada um. Todos podem ser melhores religiosos, cientistas ou meros cidadãos se orientarem a sua conduta por valores morais e de amor. A ciência fez o seu percurso, distinguiu o exato do místico, mas o cientista perdeu o sentido da bondade. Ao se distanciar da realidade espiritual para apenas se focar, essencialmente, na realidade material, perdeu uma parte desse todo dentro de si mesmo.  A ciência, por sua vez, ao dissecar a realidade por partes perdeu a articulação do conjunto. A Ciência Espiritual assumiu o seu papel entre os finais do séc. XIX e início do séc. XX. O plano espiritual desdobrou-se em inúmeras manifestações de cariz espírita para nos despertarem para esta revelação. Uma revelação que afinal já tem dois mil anos. No período entre os finais do séc. XIX e início do séc. XX o fenómeno da mediunidade, da comunicabilidade dos espíritos e da veracidade da continuidade da vida foram acesamente tratadas em diversos círculos de ciência, inclusive com publicações em revistas e proceedings. O livro “No Invisível” de Denis é um impressionante tratado sobre isto mesmo. Volvido pouco mais que um século constata-se que o Espiritismo é um instrumento de consolo pelo qual se exercitam os ensinamentos do Cristo em prol da compreensão do sentido da vida e da caridade. O Espiritismo permite compreender, por exemplo, que o equilíbrio entre o ego e o Self (alma) possibilita vencer a sombra (defeitos e debilidades morais) que nos atrasam o bem-estar e o progresso individual. Permite igualmente compreender como aceitar a resignação como meio de combate à angústia, ou como a prática dos ensinamentos do Cristo são o melhor treino da inteligência e da paciência como meio de fortalecimento da confiança, do propósito, da vontade e da fé raciocinada. Neste âmbito, a interdisciplinaridade mostra que a ciência, a religião (no sentido de religação a Deus), o Espírito e o Divino fazem parte do mesmo todo. Afinal, só há uma realidade e é nas dobras do nosso inconsciente que se encontra a surpresa pelo potencial a explorar e a compreender que está em nós mesmos. É em nós que está a aprendizagem já empreendida que permite o génio se erguer pela ajuda da inspiração recebida. É em nós que está o germe da próxima descoberta, do humanista, do individuo que vai saber fazer o outro sorrir. Se a ciência moderna verteu a sua atenção para os fenómenos materiais negligenciando o todo, agora será a hora de lhe acrescentar os elementos em falta para que se complete o estudo e a observação da realidade humana – que inclui a mediunidade e o facto de sermos seres espirituais. Isto, para que de forma segura a ciência inove o status quo que tem vindo a cristalizar ou deteriorar algum do saber existente. Pelo menos, a não ajudar a que se desenvolva ao ritmo para o qual está talhado. Talvez por isto a verdadeira Ciência esteja ainda por alcançar, pelo que o desafio para o ser humano está longe de ser ganho, tanto dentro como fora das suas fronteiras terrestres e físicas. Façamos a nossa parte partilhando o que sabemos de revelador sobre a verdade espiritual.  

Referências

[1] DENIS, L. (2011), No Invisível, 2ª Ed, FEB, do original de 1911.
Título: No Invisível
[2] COSTEIRA, Arnaldo, Labirintos do Ódio, da Traição e da Dor, 1ª Ed, Hellil, 2011.
Título: Labirintos do Ódio, da Traição e da Dor