A obsessão na rede das redes

 

“Não se deve atribuir aos Espíritos o que é obra humana. Mas acreditai na sua influência oculta e constante, produzindo ao vosso redor mil circunstâncias, milhares de incidentes necessários à realização dos vossos actos e da vossa existência”

(“O Livro dos Médiuns”, Allan Kardec, Erasto, item 96)

A dinâmica virtual das ligações entre indivíduos, nomeadamente pelas redes sociais, molda a forma como se lida com o imaterial, como estabelecemos laços de confiança e afinidade pela palavra escrita, pela semiótica contida nas imagens pelo que intuímos ter sido a intenção por de trás daquela mensagem, ou seja do sentimento.

Neste sentido, conjecturamos que os media sociais têm um papel na vida humana que vai para lá do que julgamos ser a sua principal função: entretenimento e comunicação. Eventualmente, os media sociais também são um meio de “treino” da abstração. Esta constatação parece estar de acordo com a designada era conceptual que vivemos, e na qual predomina o pensamento abstrato, tal como argumentado pelo autor Daniel H. Pink no livro “A Nova Inteligência” [1].

Estamos habituados a lidar e a compreender que vivemos numa realidade a 3 dimensões, mais uma, o tempo, ou seja 4 no total. Porém, há mais dimensões. Estudos em física, nomeadamente a partir da Teoria das Cordas, explicam a existência de outras dimensões.

O Espiritismo, pelo relato dos Espíritos, faz-nos perceber que a alma depois da morte do corpo (ou seja, o espírito) perdura. A vida contínua. E sendo assim, há a dimensão (ou dimensões) onde os espíritos marcam a sua presença.

Por sua vez, os espíritos podem-se comunicar através das pessoas com mediunidade (sensibilidade), e que, inclusive, por variadas razões e formas, os espíritos podem-se fazer sentir, interferindo no nosso dia-a-dia (material), ou por indução ao nosso pensamento e comportamento. Porém, a maior parte de nós não os vê, não se dá conta dessa presença ou influência. Mas se a vida na Terra tem como sentido a evolução humana, pese embora os retrocessos pelo comportamento de cada um, a tendência é que a evolução, seja ela social ou material tenha como fim levar-nos a mais entendimento e bem-estar.

A evolução que associa ganhos éticos e intelectuais, leva-nos a mais autoconhecimento, para mais autocuidado e atenção para com os outros. Assim, podemos argumentar que a expansão da capacidade de abstração, pela qual se processa a apreensão da lógica dos factos, vai ajudar a apreender a realidade espiritual para melhor lidarmos com as dinâmicas em rede, a social e a espiritual. Fazendo a ponte, a evolução da tecnologia e dos hábitos ganhos leva-nos a ganhar novas dinâmicas de abstração. Contudo, há que cuidar da saúde do eu, dos desejos solicitados pelo ego doente que nos leva à busca desenfreada pela fama passageira, ao erotismo vulgar, à culpa, etc. Este assunto está muito bem tratado no livro de Divaldo Pereira Franco “Vivências do Amor em Família”, cap. 3, Família e Obsessão.

O papel do Espiritismo é o de esclarecer sobre factos, não de criar os factos. Isto mesmo foi debatido por Allan Kardec no livro “O Céu e o Inferno” [2]:

“Como sempre acontece relativamente a factos extraordinários que o senso comum desconhece, o vulgo viu nos fenómenos espíritas uma causa sobrenatural, e a superstição completou o erro ajuntando-lhes absurdas crendices. Provém daí uma multidão de lendas que, pela maior parte, são uma amálgama de poucas verdades e muitas mentiras (…) Os fenómenos espíritas de nossos dias, mais generalizados e mais bem observados à luz da razão e com o auxílio da ciência, confirmaram, é certo, a intervenção de inteligências ocultas, porém agindo dentro de leis naturais e revelando por sua acção uma nova força e leis até então desconhecidas. A questão reduz-se, portanto, a saber de que ordem são essas inteligências.” (1ª parte, Capítulo X, itens 1, 2 e 3).

À inteligência racional corresponde uma variada ordem de registos morais que definem o laço que se estabelece entre pessoas e espíritos. Um laço que tanto pode ser positivo (exemplo, espíritos que nos protegem, inspiram, auxiliam à intuição) como negativo (exemplo, espíritos obsessores, que nos perturbam, que se comprazem no mal que nos acontece). Esses laços são estabelecidos pela nossa sintonia e afinidade espiritual, dependem da nossa elevação moral e comportamento, e resultam das nossas escolhas no presente, mas também das consequências de causas originadas no passado – aplicação da lei de causa e efeito.

Assim, tanto podemos ser aconselhados, como afligidos pelos espíritos da nossa rede. Cabe a cada um decidir que esforço está disposto a fazer para filtrar pensamentos e moldar comportamentos, para que predomine, na sua rede, os que o amam, e não os que visam a perturbação.

Vivemos ligados numa rede global que inclui a rede social e a rede espiritual. Na primeira interagimos a partir da materialidade das coisas, pelo que temos a ideia que dela nos sabemos defender. Na segunda, sendo intangível, tal como é o pensamento, temos de aprender a compreendê-la e a agir em conformidade, nomeadamente pela higiene de pensamentos e dieta de desejos que apenas respondem às necessidades mundanas e imediatistas do ego.

Neste aspeto, a questão coloca-se ao nível da sugestão ao pensamento, pelo que temos de saber distinguir entre ajuda e perturbação. Se é intuição, inspiração, a sugestão chega-nos mediante a necessidade ou pedido de auxílio a dada tarefa ou situação. Um exemplo deste auxílio em contínuo dá-se com o processo criativo ou de desenvolvimento da ciência, em que estes ao serem realizados pelo bem e sem domínio egoico (do ego doente – pelo egoísmo, pela vaidade, pelo orgulho), é apoiado gerando bem-estar.

De forma diferente acontece com as sugestões de obsessão. Estas caracterizam-se pela sugestão constante e obsessiva em torno de ideias pueris e que visam perturbar a pessoa [3]. No entanto, há que notar que o ser humano é cocriador do seu pensamento, pelo que a partir das suas correntes mentais vai produzir e influenciar o seu próprio contexto na Obra Divina, ao mesmo tempo que é influenciado por ela. O livro “A obsessão e suas máscaras” trata diversos destes aspetos, nomeadamente ao nível patológico, físico, psíquico e espiritual. Debate ainda algumas terapêuticas que visam amenizar ou resolver o problema da obsessão. [4]

Comportamentos obsessivos simples, mas muito perturbadores para o próprio, ou para a vida familiar, reflectem-se, por exemplo, no zelo excessivo pela arrumação e limpeza doméstica, na ordenação de objetos, na compulsão, entre outros. Estes comportamentos são habitualmente assumidos como de perfeição e exigência. Contudo, quando a pessoa se torna prisioneira de vigilância e se mantém em alerta continuo sobre si próprio e sobre aquilo que a rodeia, esse estado pode ser consequência da sugestão espiritual obsessiva. Alguns casos de obsessão em estados mais avançados (subjugação) podem levar a pessoa obsidiada a intentar contra si mesmo (auto dano), ou mesmo contra a sua própria vida.

No entanto, muitas das vezes atribuímos aos espíritos responsabilidades de intervenção que não existem. É a própria pessoa, pelo desequilíbrio do seu ego relativamente ao seu Self (o seu “eu integral”), que se coloca em estados emocionais de descompensação. É como se tentasse a compensação [5], com a qual procura mostrar a si e aos outros que ela é contrária a dado afeto. Joanna de Ângelis na psicografia de Divaldo Franco [5] refere o seguinte sobre este aspeto:

“Religiosamente somos filhos do pecado, movidos pelo medo de errar, do inferno, do purgatório, que no Espiritismo se traduziu pelo medo do umbral [ainda que este exista no concreto – é a faixa vibracional onde se localizam os espíritos de mais baixa condição moral, pelo período que diga respeito à sua transição entre o plano terreno e espiritual, e segundo a lei divina]. Trocamos o Diabo que nos prejudica pelos obsessores que nos fazem infelizes, sem compreender a nova dimensão que estes conceitos nos abrem, embora parecidos” (p.284).

De facto, apesar da semelhança, aqueles conceitos explicam realidades totalmente diferentes. Uma é fantasiosa (i.e., o inferno) e a outra é concreta (i.e., o umbral e os obsessores). Todavia, alguns de nós, mesmo compreendendo a reencarnação, lidam com aqueles conceitos de forma simbólica, mas mantendo as referências dentro de nós. Isto, quando tudo decorre tal como referido pelo Espírito de Erasto:

“Não se deve atribuir aos Espíritos o que é obra humana. Mas acreditai na sua influência oculta e constante (…)”(“O Livro dos Médiuns”, Allan Kardec, Erasto, item 96).

É obra humana o exercício do ego, nomeadamente quando tenta esconder o “eu” debilitado atribuindo a outras causas aquilo que tem de começar no próprio. Para o investigador Fenichel (1981) estes quadros egóicos exibem por vezes o despudor como defesa contra o sentimento de culpa, ou a coragem contra o sentimento de medo. [6]

Além do mais, sem a mudança íntima e estrutural conducente a novos comportamentos, o que seja obsessivo contra o indivíduo, permanece. A psique, nesse caso, mantém o mesmo tipo de sintonia espiritual que já terá conduzido aquele espírito, em vidas pretéritas, a prejudicar outros (i.e., aqueles que agora o procuram e perturbam por via do pensamento).

De facto, a lei de causa e efeito não nos permite ilibar de provas e expiações que nos cabe viver. A compreensão desta realidade ajuda-nos a desenvolver ferramentas para melhor lidarmos com a adversidade – que não deriva de azar ou castigo, mas sim de uma lei natural que atua sobre a vida do espírito. E tal como sucede com as ações sobre a matéria, que são reguladas pela lei da gravidade, também as ações morais têm uma lei que regula os efeitos face a causas.

Ao compreendermos estas dinâmicas naturais da vida ganhamos ferramentas para nos defendermos de laços espirituais indesejados. Estas ligações, se perversas, podem manipular o nosso pensamento, ou pelo menos tentarem influenciar o cumprimento do nosso destino, pois, ordinariamente, os espíritos intervêm nas nossas decisões, tal como se compreende da resposta à questão 459 de “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec:

“Os Espíritos influem em nossos pensamentos e actos? Muito mais do que imaginais. Influem a tal ponto, que quase sempre são eles que vos dirigem”.

Allan Kardec define a obsessão como a “acção persistente” do “mau Espírito” sobre outro ser. A obsessão é sempre causada por um Espírito “mau” (pouco evoluído) ou ignorante. A afinidade ou ligação à pessoa que procura subjugar deriva das quedas morais de um em relação ao outro, dado o contexto de vivências passadas entre estes.

O obsessor mantém em si a ideia de vingança pelo sofrimento que lhe foi causado por aquele(a) de quem agora se quer vingar. Tudo se estabelece pelo cumprimento da lei de causa e efeito. A pessoa (o obsidiado) sente as dores infligidas pelo obsessor no grau equivalente ao respetivo merecimento, ou seja, às dores que causou no outro em vidas passadas. E estas serão sentidas mediante a necessidade deste, por elas, vir a modificar o seu comportamento – por forma a se conciliar, a refletir, a buscar a harmonia, em si, com o que o rodeia, com o divino. Mas a dor é-lhe infligida à dimensão do que tem capacidade para vivenciar, pela expiação. A dor é um instrumento de aprendizagem que deve incutir a pessoa à mudança íntima – a cada um segundo as suas obras. O sofrimento é a forma como vivemos essa dor. Se soubermos compreender a origem, sermos pacientes e mantermos a resiliência como instrumento, então passaremos melhor face à dor.

Sucede ainda que o ciclo de agressões entre obsessor e obsidiado se pode inverter entre estes ao longo de vidas sucessivas. O fim deste ciclo termina com o perdão e com a mudança de conduta (pelo bem) de ambos. Isto implica uma alteração no campo vibratório responsável pela radiação de pensamentos – campo magnético irradiado. Para que isto aconteça há que dar o primeiro passo. Comecemos por nós.

Tanto o obsidiado como o obsessor necessita de ajuda, de amor, não de mais dor. E tal como a doença física tem necessidade de um médico para a cura, a doença moral necessita de recursos de ajuda espiritual para ser tratada. E qualquer que seja a ação espiritual persistente que faça alguém prisioneiro dos seus atos (pretéritos), ela só pode ser oriunda de um Espírito cuja conduta não é de bem. Nestes casos é importante o esclarecimento de ambos sobre a realidade que os envolve e as causas e efeitos desse estado de perturbação mútua. A Casa Espírita pode ser uma boa escola para ambos. Todavia, é importante entender que a ajuda espiritual nunca pode ser feita como objeto de comércio, pois a vida decorre tal como Jesus ensinou: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).

O tratamento da obsessão na Casa Espírita pode ser feito, primeiro, a partir das palestras públicas, que ajudam à compreensão sobre a nossa realidade espiritual – esclarecendo a pessoa e os próprios espíritos que a acompanham.

Segundo, pelo passe magnético, que ajuda na dispersão dos maus fluídos magnéticos e psíquicos e no restabelecer da harmonia perispiritual do indivíduo.

Terceiro, pela toma da água fluidificada, a qual complementa o equilíbrio neste domínio.

Quarto, pela leitura de bom nível, seja ela ou não espírita, para auxiliar ao equilíbrio do psiquismo levando o indivíduo a refletir sobre sua conduta diária e a ponderar outras perspetivas sobre si e sobre a sua relação com os outros.

Por fim, pela ida às salas de trabalho mediúnico, nas Casas Espíritas que disponham deste recurso, visando-se o esclarecimento dos espíritos que nos possam acompanhar, nomeadamente os obsessores. Nestes casos a argumentação persuasiva, mas afetuosa, pode ajudar a esclarecer estes espíritos sobre a sua situação consolando-os e libertando-os daquela ligação penosa (ainda que disso não tenham consciência, desejando mesmo o contrário até que possam terminar os seus planos de vingança). Sobre este assunto em particular ver os textos, aqui, no Invisibillis, relativos à temática “Casa Espírita”.

É importante notar que a percepção de alívio do indivíduo obsidiado, após visitar a casa espírita, não é suficiente. Este deve continuar a orar e a vigiar os seus pensamentos, cuidando o seu comportamento, tal como se depreende das palavras de Jesus nesta passagem.

“E quando o Espírito imundo tem saído do homem, anda por lugares áridos, buscando repouso, e não o encontra. Então diz: voltarei para a minha casa donde saí. E, voltando, acha-a desocupada, varrida e adornada. Então vai, e leva consigo outros sete Espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam ali: e são os últimos actos desse homem piores do que os primeiros”(Jesus, Evangelho de Mateus, cap. XII, versículos 43 a 45).

Quer isto dizer que, primeiro, se o indivíduo obsidiado se liberta do obsessor, mas não altera o seu psiquismo, fica sujeito ao retorno deste. É o que significa: “Voltarei para a minha casa donde saí”. E retornando à sintonia de pensamentos com a pessoa, o espírito ao vê-la “desocupada, varrida e adornada”, ou seja, na ausência de modificação nos hábitos da pessoa, mantendo esta os mesmos desejos e imperfeições – desocupada de ideias úteis e fraternas, o espírito obsessor volta, mas agora com outros tantos para seus gozos de perturbação. Por isso diz Jesus, “a quem muito foi dado, muito será pedido”, pelo que há consequências gravosas para quem recalcitra no erro depois de conhecer a Verdade – ou seja, depois de ser ajudado e de ter compreendido a dinâmica da vida na sua correlação entre a vida terrena (efémera) e a espiritual (perene, eterna).

Não é da Verdade que devemos fugir, pelo que devemos trabalhar para a nossa modificação de comportamentos e procurar compreender a nossa realidade espiritual e as leis que sobre elas existem (como a de causa e efeito). Devemos fugir da ignorância, do egoísmo e da preguiça: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João, 8:32).

Temos que nos focar em factos, analisá-los e fazer um bom uso da razão. A razão ajuda a compreender a Verdade e por ela o sentido da vida, o propósito para os nossos dias. A prática do amor ajuda-nos a dar sentido a tudo isto aumentando o nosso bem-estar e o daqueles que nos rodeiam. Assim, poderemos tirar benefício do facto de estarmos mergulhados na rede das redes, que é a rede espiritual que nos impulsiona à evolução e ao bem-estar.

Referências

[1] PINK, Daniel H., A Nova Inteligência, Oficina do Livro, 2008.

[2] KARDEC, Allan, O Céu e o Inferno, Hellil, 2020.

Título: O Céu e o Inferno

[3] DENIS, Léon, Joana D’Arc, Médium, 19ª edição, FEB, 1999.

Título: Joana D’Arc, Médium

[4] NOBRE, Marlene R. S., A obsessão e suas Máscaras, 10ª edição, FE Editora Jornalística Ltda, 2004.

Título: A obsessão e suas máscaras

[5] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Refletindo a Alma: A Psicologia Espírita de Joanna de Ângelis, LEAL, 4ª edição, 2016.

Título: Refletindo a Alma, a Psicologia de Joanna de Ângelis

[6] FENICHEL, Otto, Teoria Psicanalítica das Neuroses. São Paulo: Livraria Atheneu, 1981.