Milagre ou ignorância?

 

“Expulso do domínio da materialidade, pela Ciência, o maravilhoso se encastelou no da espiritualidade, onde encontrou o seu último refúgio. Demonstrando que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, força que incessantemente actua em concorrência com a força material, o Espiritismo faz que voltem ao rol dos efeitos naturais os que dele haviam saído, porque, como os outros, também tais efeitos se acham sujeitos a leis. Se for expulso da espiritualidade, o maravilhoso já não terá razão de ser e só então se poderá dizer que passou o tempo dos milagres

(Allan Kardec, “A Génese”, Cap. XIII, nº3)

Jesus não operou milagres, pois estes são uma impossibilidade face às leis da física, da natureza, e, por conseguinte, de Deus. Contudo, os feitos descritos como milagres sucederam, pelo que a sua análise carece de uma abordagem pelo uso da razão. Neste sentido há que interpretar aqueles factos à luz do conhecimento sobre a mediunidade de Jesus e o efeito do magnetismo humano. Jesus curava impondo as mãos sobre a cabeça. O mesmo é dizer que realizava o passe magnético impondo as mãos sobre a glândula pineal. O seu campo magnético (em harmonia com a sua elevação espiritual) e a atitude de fidelidade aos propósitos da vida espiritual, ou seja, a fé das pessoas, concorriam para o processo de cura.

Por seu turno, também é sabido que o espiritismo não faz milagres, estando este assunto devidamente tratado nas obras de Kardec [1]. Porém, dada a imaterialidade da realidade a que se refere e aos fenómenos que trata, pode parecer aos olhos dos menos informados algo de sobrenatural, logo de cariz miraculoso. Pois, é exatamente o inverso. O espiritismo está para os ditos fenómenos sobrenaturais, como a ciência está para a ignorância dos homens quando encaram o desconhecido face à época em que vivem.

O milagre é o espelho da nossa ignorância sobre as leis que explicam a vida material e espiritual. Neste sentido, não há ciência que tudo explique nem espiritualidade que só por si a tudo baste. Ambos são veículos merecedores de cuidadoso estudo, até que ambos possam ser compreendidos pelos mesmos indivíduos e de forma interdisciplinar. O objetivo é completar a descrição e o entendimento das Leis de Deus, nomeadamente as leis morais que ponderam a existência da vida espiritual.

Com a leitura do terceiro livro da codificação publicado por Kardec, “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, compreende-se que Jesus não praticou nenhum milagre. Ele usou o seu conhecimento da mediunidade, ou seja, o magnetismo humano e a capacitação da fé (raciocinada), para a dispor em favor dos que careciam de ajuda, de consolo.

Jesus não curou todos, mas se fossem milagrosos os seus atos, ou seja, se fossem praticadas exceções às leis morais, então todos teriam sido curados, pois não haveria diferença entre o merecimento de uns e o percurso ainda por fazer de outros. Contudo, não há milagres, mas oportunidades semelhantes para todos, cujos resultados se alcançam em momentos diferentes e em função das escolhas de cada um, dado o livre-arbítrio.

Tal como a ciência tem vindo a revelar novas leis e a explicar os fenómenos compreendidos na alçada dessas leis, também o espiritismo o faz no domínio da nossa realidade espiritual. A naturalidade da existência do corpo é equivalente à naturalidade da existência do espírito, que mais não é do que a alma sobrevivente ao corpo após a sua morte. Encarnado ou no plano espiritual, o espírito está sujeito às leis do princípio espiritual, tal como o corpo está sujeito às leis que regem o princípio material. Não há exceções à aplicação dessas leis, sejam elas no campo da matéria ou do espírito.

A ciência desenvolveu metodologias e comprovação sistemática (dita científica) para explicar o que diz respeito ao princípio material. De igual modo, o Espiritismo surge como instrumento de sistematização no que concerne ao princípio espiritual. Podemos entendê-lo como instrumento de trabalho que apoia a comprovação e o raciocínio sobre a existência e efeito prático e filosófico das leis morais que regem a existência do espírito no corpo (ou seja, a alma) e para lá dele (no plano espiritual).  O Espiritismo ajudam ainda a explicar aquelas leis no contexto de ligação entre o passado, o presente e o futuro da existência do espírito no âmbito da sua evolução de carácter intelectual e moral. Por este prisma podemos compreender ainda uma pequena parte das obras de Deus. Deus, que é inteligência suprema e princípio organizador de todas as coisas.

Note-se que não empregamos o termo inteligência suprema de forma descuidada ou temente, mas sim a partir da observação da obra realizada: o ser humano, a Natureza, o Universo e o equilíbrio entre todos estes elementos. Tudo é regido a partir de leis simples, justas e colocadas no sentido de apoio à evolução de tudo e de todos. Por este prisma é quase impossível não admirar a Obra.

Assim, se tudo o que o ser humano não fez Deus fez, qual o sentido da vida face ao que está por fazer?

Na maioria das vezes a resposta é: falta ser-se feliz. E quando se questiona sobre o que é ser-se feliz a resposta habitual implica algo em torno de ter (coisas) e bem-estar pessoal. É mais raro ouvir alguém a dizer que a felicidade está no bem-estar do outro e no ganho de sabedoria. É por isto que continuamos a aguardar pelo milagre, pela exceção, por aquilo que não necessitamos. Esperamos receber quando deveríamos centrar o pensamento em dar, em nos desapegarmos, sobretudo em agradecer pelo que já temos e somos.

O sentido da vida é o amor que potencia o uso da inteligência enquanto instrumento que indaga sobre como fazer bem ao próximo, sobre como ser-se solidário no trabalho, atencioso com o desconhecido, paciente com quem nos irrita, atento às carências alheias, carinhoso no lar, afetuoso no trato. Quem assim pensa e age compreende o sentido da vida. Sabe viver sem ser dominado por um ego egoísta, pois cuida do próximo e trata de si purgando-se do individualismo. Fá-lo de forma a aprimorar a individuação, ou seja, o seu autoconhecimento. E para isto não há milagre, mas sim esforço de mudança íntima.

Se o papel de cada é nutrir saber para gerar o bem-estar de outros, este papel pode ser cumprido de várias formas. É um papel para todos, por exemplo, para o patrão, empregado, empreendedor ou desempregado. E podemos começar pela forma como vigiamos o nosso pensamento e sentimentos.

Sim, o nosso bem-estar também está nas mãos de outros, pelo que nestes elos perfaz-se a cadeia de amor que participa das leis do universo. E enquanto estas não são compreendidas, reencarnamos, em estágios mais ou menos elevados, mediante as necessidades de libertação da ignorância que ainda nos domina a nível espiritual e intelectual. Assim, o nosso papel na vida é, também, trabalharmos com vista a evoluirmos e aprendermos a agir em favor de outros, o que gera reciprocidade. Também temos de trabalhar em favor de nós próprios, libertando-nos da sombra, ou aprendendo a aceitá-la até vencermos esses nossos defeitos, ou dificuldades. Neste percurso vamos desenvolvendo a nossa inteligência sensível e participando mais ativamente na Obra de Deus.

A vida não carece de milagres, mas sim de esforço para que consigamos vivenciar a nossa transformação moral com resiliência. O milagre, sendo uma exceção às leis estabelecidas, nunca ocorre. Afinal, Jesus mais não fazia do que aplicar sabedoria e os meios que estão à disposição do ser humano – em comunhão com o divino. A maravilha, que é sinónimo de milagre, dá-se na medida que vamos sabendo criar e nutrir laços de amor perenes, pois estes não terminam na nossa rede social. Estendem-se até à realidade espiritual que nos envolve. Nós, tal como todos aqueles aos quais nos ligamos, ora vivem a realidade no corpo, ora o fazem do outro lado da vida, contudo, mantêm-se as motivações de laço, pelo que melhor é que estas sejam baseadas em amor.

Tal como referido pelo Espírito André Luiz, no livro “Mecanismos de Mediunidade”, qualquer progresso é condicionado por duas variantes: “o tempo de evolução, ou seja, aquilo que a vida lhe deu, e o tempo de esforço pessoal na construção do destino, ou seja, aquilo que ele próprio já deu à vida.” [1]

Referências

[1] Kardecpedia.com. Recuperado de https://www.kardecpedia.com/obra.

[2] XAVIER, Francisco; VIEIRA; Waldo, orientado pelo Espírito André Luiz, Mecanismos de Mediunidade, 11º livro da colecção, A Vida no Mundo Espiritual, FEB. Recuperado de http://www.espiritoimortal.com.br/espirito_imortal/mecanismos-da-mediunidade.pdf.