Vivos no Universo: a caminho da luz, ou do nada?

 

“Estamos vivos, neste Universo que tem propriedades que nos permite estar vivos. Será que isto tem significado ou será meramente uma afirmação filosófica?”

(Gerry Gilmore, Professor de filosofia experimental em Cambridge) [1]

A partir do seu conhecimento de ciência Gerry Gilmore questiona-se sobre a vida e o Universo apontando o nada como destino. Argumenta que a física explica a realidade do Universo aceitando que há uma razão para a existência de parâmetros que permitem a existência da vida. No entanto, se houvesse uma alteração nas diferenças de massa entre o protão e o neutrão de apenas dois por cento na escala de parâmetros de 12 propriedades, a nova distribuição de carga elétrica entre as partículas tornaria a vida impossível. Para justificar o nada, o filósofo Gerry Gilmore diz que o Universo continua a acelerar, pelo que “tudo terminará numa única partícula, a solidão extrema”. Gilmore baseia-se no modelo de Planck (dualidade onda-partícula da matéria que dará origem à teoria quântica) para explicar a sua fundamentação. Porém, ao pensarmos que nada daquilo vai acontecer no nosso período de vida, nem daqueles que conhecemos, ficamos com uma sensação de que está tudo bem. Mas não está. Não está bem que se lance a desesperança ditando o nada como sendo o futuro, quando há informação suficiente a justificar o contrário. Afirmar que o destino é o nada revela descuido para com inúmeros trabalhos da ciência e da filosofia, mas também sobre os ensinamentos de Jesus e no que foi vertido na obra de Allan Kardec, codificador da Doutrina Espírita, a respeito da vida. E se os espíritos existem é porque depois da morte do corpo, o ser inteligente, ou seja, cada um de nós, o espírito, perdura. Perdura a sua individualidade, desenvolvimento moral e conhecimentos. Neste sentido, o futuro do ser não é o nada, mas sim a eternidade. Finita, só a existência material do ser, que não se extingue enquanto nela há vitalidade (fluido vital). O ser espiritual está destinado a evoluir, pelo que também não estará sujeito à calamidade da extinção súbita – mesmo a longo termo. Quando se usa uma lente que limita a observação da realidade, o futuro pode parecer perturbador. E o cientista que recebeu da vida o talento da descoberta e do conhecimento deveria ser portador da esperança, não o paladino da desgraça. Quando Gilmore nos conduz ao “nada” nas suas preleções é o medo que fica, não a luz. E se queremos tratar este assunto com sabedoria temos de o saber analisar no seu todo. E no todo há a matéria e o ser espiritual. Se a matéria se esgota, transformando-se, tal como a física explica à luz do que hoje sabe, também a vida inteligente, do Espírito, perdura, tal como igualmente hoje se conhece e se pode explicar à luz do conhecimento. Está na hora de nos questionarmos sobre como ainda é possível que tantos indivíduos da ciência ainda continuem a ignorar a realidade do espírito face às evidências, estudos e literatura publicada. Será Jesus mais ignorante do que Gerry Gilmore? Não sendo, o que está certo dizer é que a evolução se perfaz na direção do todo, que é Deus, e não do nada, que é a solidão até ao vazio total – e se assim fosse, qual o sentido para a existência? Porém, compreende-se a confusão em que muitos se encontram, nomeadamente os que se dizem cristãos. A escritora Agustina Bessa Luís na obra “Contemplação Carinhosa da Angústia” retrata esta realidade de forma magistral:
A prova de que o cristão vive como um bárbaro é o sentido que tomou a arte religiosa. Não é raro encontrar nas salas de convívio burguesas, juntamente com a televisão, ou a mesa de jogo, ou a instalação estereofónica para o gira-disco, um Cristo crucificado sobre a lareira, ou uma Virgem dourada em cima da cómoda de vinhático; ou objectos do culto, espalhados numa intenção decorativa, quando não um quadrinho de ex-voto que se foi buscar a uma capela remota ou à loja de um antiquário. E depois essas mesmas pessoas, ao abrigo duma cultura sentimental, promovem toda uma campanha contra a modificação dos ritos, e censuram os prelados que caminham no sentido de não objectivar Deus e de não o integrar na platitude da imaginação humana. Deus significa luz; ser filho de Deus é, pois, ter origem na luz. Esta é uma metáfora que utilizavam os essénios do Qumran e que designa uma energia interior que ultrapassa a experiência da pessoa e o conceito de pessoa. Não é fácil, para uma sociedade humana estreitamente ligada a uma objectivação de Deus que o mostra com uma consciência semelhante à nossa e que envolve todos os nossos articulados de vida, não é fácil, repito, desprender-se duma espécie de Deus nacional e tribal; como de resto a Bíblia o representa; como o criador dum mundo limitado em comparação com o que conhecemos hoje. Um príncipe, promulgador de decretos e que prometia como recompensa da obediência um lugar à sua direita, como se prometia aos áulicos deste mundo. Cem anos depois da morte de Jesus, surgiu no Ocidente a ideia de Cristo como filho de Deus, concreta manifestação de Deus. Mas S. Paulo evitou sempre confundir Cristo com o Deus Único; a sua forte convicção monoteísta impedia-o de admitir uma incarnação de Deus. De certa maneira, o cristão da actualidade encontra-se nessa mesma posição. Ele sabe que há muito de idolatria numa explicação objectiva de Deus. Idolatria a que chamamos às vezes ciência, ou história, ou progresso, mas que não satisfaz a fé na nossa luz interior. A educação da fé tende a ser a descoberta dessa energia interior agora em vias de se desembaraçar dos velhos detritos mágico-religiosos que eram o suporte de aspirações e de desejos quase sempre inscritos no nosso quotidiano.”
De facto, não é só Gerry Gilmore que está equivocado, temos estado quase todos, pois ainda olhamos para a realidade com os mesmos filtros da nossa tradição e incultura, sobretudo por não nos questionarmos. Deixámos que alguns religiosos dogmáticos tomassem posse de algo que é tão deles como de todos, que inclui o direito à evolução e o dever do bem para com todos, pois todos somos iguais e sem direitos ou deveres de vantagem. Deixámos que o orgulho humano invadisse o espírito de muitos dos indivíduos que fazem ciência levando-os à vaidade e à desconstrução do Deus que fez o Homem. Equivocaram-no com o deus que o homem fez. Deixámos que a materialidade da realidade que nos cerca nos empurrasse para a perda de esperança – que fica onde passámos a achar que ela está ao alcance do que podemos comprar. Sim, passámos a ser “produto” de alguém, de uma entidade qualquer. Temos deixado que nos tratem, apenas, como consumidores, seres individualistas, em vez de nos assumirmos como seres de Deus que usam um planeta como escola e um corpo como veste para fazer os exercícios nessa escola. Tudo o que temos é-nos entregue por empréstimo com um fim, tal como sucede com muitos dos nossos pensamentos, nomeadamente os que assumimos (orgulhosamente) como geniais. Sejamos humildes, sejamos convictos no provir e trabalhemos agora para que esse provir tenha como base a esperança e a melhoria do todo a partir do bem em cada uma das partes, cada um de nós. O nada só existe quando a vida é traduzida por formulações que ainda só projetam as conceções materiais.  

Referências

[1] in Revista Visão, 7 de janeiro de 2016