A vã glória e a responsabilidade

 

“Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzem deveres de impiedade…” (Há Dois Mil Anos, pelo Espírito Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier) [1]

 

No livro “Há Dois Mil Anos” há uma passagem que ao mostrar a brutalidade daquele nos deve fazer questionar sobre se no nosso quotidiano somos as personagens Lívia ou Lêntulo. Lívia, a bondosa esposa do senador romano Públio Lêntulo, que na sua vida haveria de se cruzar com Jesus, diz a Públio quando este manda vergastar um jovem: “Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzem deveres de impiedade…”.

De facto, aquelas não são palavras e ações de um tempo remoto. Afinal, vezes sem conta somos chamados a pôr à prova a responsabilidade do “ter” e do “ser” que se confronta em nós. E quando tal sucede, será que a nossa educação (espiritual, não a intelectual) nos ensina a abdicar para nos colocarmos no lugar de quem falha? Saberemos nós que face ao erro, sobretudo se contra nós, o erro maior está na resposta popular “não deixes a coisa por menos!”, ou seja, não deixes que a tua honra (orgulho) fique por vingar.

O filme “Non ou a Vã a Glória de Mandar”, 1990, de Manuel de Oliveira [2] retrata diversas batalhas travadas pelos portugueses desde o tempo de D. Afonso Henriques até à guerra colonial. O realizador procura ilustrar quão vã e inútil ou ineficaz é a glória de mandar face aos destroços com que os personagens são confrontados. Destroços causados por essa ideias de glória, a de mandar. Mandar, ser donos do efémero, ainda que não o vejamos, pois, o ego que busca o prazer, o reconhecimento, ou o mundano que satisfaz o imediato apenas alcança o efémero, que não perdura. Afinal não há glória por essa autoridade, mas sim responsabilidades.

Por volta de 2012 circulou um texto falsamente atribuído ao escritor moçambicano Mia Couto, que dizia: “Existe uma geração à rasca? Existe mais do que uma! Certamente! Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo.” Ainda que não seja da autoria de Mia Couto, o seu conteúdo é pertinente.

Como pertinente é a sucessão de maus usos de vã glória, aquela que marca caminho pelos trilhos do agora, do falsário, do egoísmo e do individualismo materialista. Uma realidade que ganha estranhos contornos quando se faz circular um texto falsamente atribuído a outrem. Mia Couto e o leitor são aqui vítimas do universo abstinente de responsabilidades, que neste caso se expressa pela vampirização autoral.

Os que são pais têm a glória de mandar. Os pais têm a responsabilidade (não a autoridade) de conduzir os seus filhos a um caminho que lhes permita ganhar a educação intelectual, mas também espiritual, ou sejam do seu ser. Aqueles que desejam ter a glória de mandar, se educados sobre quão vã esta é, no seu caminho, conseguem perceber que tê-la não é fruir de uma glória que se exerce pelo poder sobre os outros, mas sim assumir responsabilidades. E essa responsabilidade inclui escutar quem nos diz “não!”, tal como sucede no processo de educação. Se o não! ouvido ou verbalizado for sem a intenção de glória, entregá-lo é um bem e saber recebê-lo acomodando-o em nós é um ato de inteligência.

Assim, os pais dos chamados “indignados” da geração que se manifesta, agora, por que se sente “à rasca” têm na sua posse a glória de dizer “não!”, mas também de serenar quando tudo parece difícil. A conjuntura social e económica diz-nos “não!” e vai continuar a dizer até que possamos mudar algo em nós em favor do não egoísmo, da não preguiça pelo facilitismo e da recompensa imediatista. Notemos que quando algo, que muito queremos, nos surge como sendo muito fácil ou muito difícil de obter, então há que reequacionar. A vida pede-nos esforços ponderados pela ética e pela responsabilidade, mas fá-lo na medida do que de nós pode ser entregue em favor do empreendimento sugerido.

Viver em conformidade com os princípios da responsabilidade não é uma tarefa fácil, tal como não o é compreender que responsabilidade é essa, nomeadamente no contexto da vida. No capítulo IV de O Evangelho Segundo o Espiritismo é referido que a reencarnação fortalece os laços de família. Significa que esses laços são, por vezes, uma herança trazida do plano espiritual, de onde vimos, antes de nascermos de novo. Contudo, nem todos aqueles a quem estamos ligados reencarnam no mesmo período. Todavia, o laço não se desfaz, pelo que não temos apenas a família terrena. A esta acresce todos aqueles que do outro lado da vida permanecem ligados a nós pelo amor, pelo estímulo às ideias e às emoções. Estímulos à dimensão da família que somos, dos sentimentos que nutrimos. E talvez por isto saibamos sobre tantas desavenças em família, pois nem todos caminham no mesmo sentido e com os mesmos propósitos. Pois, uns fazem-no com responsabilidade, outros em nome da vã glória de mandar. Assim, quando a família os junta condiciona eventuais sentimentos desavindos do passado, ou gerados no presente, por força do laço de sangue que refreia e gera oportunidades de educação (moral).

Este facto pode ser deduzido da ideia espelhada nesse capítulo IV do Evangelho Segundo o Espiritismo [3], que refere: “através das relações anteriores [Deus] quis, além disso, estabelecer os laços de família sobre uma base espiritual e apoiar numa lei natural os princípios de solidariedade, fraternidade e igualdade” (Cap. IV, item 26, 1.ª Edição). Em suma, estes laços colocam uns ao alcance do comportamento de outros.

É comum dizer-se que Deus nada faz de inútil. Por isso, as famílias são o laboratório de trabalho espiritual que torneia aqueles com mais dificuldade em perceber o propósito da vida. Para uns os laços surgem-lhes como prova, enquanto que para outros estes são a expiação, ou seja, as necessidades pelas quais terão de passar com vista a se modificarem comportamentos e sentimentos. Note-se que as desavenças do passado têm no amor nutrido no hoje do núcleo familiar o melhor dos bálsamos. E sabemos que por definição não há famílias com vantagens de nascença ou mais felizes do que outras. O que há são tarefas de reconciliação diferentes entre os seus membros e para com aqueles que estão sob a sua responsabilidade.

Tudo termina e começa na responsabilidade e no facto de não termos percebido ainda que a glória é moral, que se resume ao saber amar. Compreender o seu significado pode ajudar a sabermos melhorar a colaboração na equipa de trabalho, na família, na comunidade. E por ela, a melhorar a produção de riqueza e de bem-estar. Isto, tendo como base o bem que deriva do trabalho e não a vantagem que pode ser usada para se tirar de uns em favor de outros. E por este prisma poderemos compreender que a pobreza não é uma desvantagem, mas um veículo da evolução de quem vive essa condição. Uma condição que deve ser apoiada e alterada pelo mérito individual e pela solidariedade coletiva, levando-se todos, ao seu ritmo, até melhor situação.

Ninguém está em vantagem relativamente ao outro, cada um está a cumprir a sua parte no seu percurso de desenvolvimento moral e intelectual. Se cada um usar a glória de ser solidário, de ter caridade moral, de estar atento aos constrangimentos do outro, ajudando-o a vencê-los, então estará a construir uma geração que já não vai viver à rasca, pois saberá erguer em si o indivíduo que ama o outro. Compreenderá que está naturalmente ligado a Deus, não porque acredita cegamente, mas porque compreende essa ligação e as leis criadas, tal como a de Causa e Efeito, que espelham em si o axioma da responsabilidade.

Não temos de desejar a vã glória de mandar, também não temos de desistir face às dificuldades, não estamos à rasca, mas sim a viver as necessidades que melhor nos servem até que consigamos mudar sentimentos e comportamentos. Apontar os nossos dias unicamente ao “ter” é atrasar o caminho. Há que ser paciente e aceitar o não!, que por vezes é um ponto cardeal essencial à correção de rota.

Há que manter os esforços para se alcançar o que se almeja, resignando-nos face aos constrangimentos e aceitando as dificuldades, pois tudo joga em nosso favor. Porém, há que aceitar a dificuldade para que se saiba acomodá-la sem que deixemos, jamais, que o desânimo, o medo ou a angústia se instalem, pois há que avançar, com ponderação, nomeadamente quando as coisas não acontecem tal como se espera. E, por vezes, quando não acontecem quando se espera é por que ainda não estamos preparados. E como a vida não é um castigo, nada acontece por acaso, pelo que devemos reduzir o desperdício.

Também por isto devemos aprender a agradecer pelo bem que nos fazem, mas também pelo mal que não nos acontece. Não esqueçamos que nem todos que cuidam de nós, na família, estão ao nosso lado, apenas, fisicamente. Esses já terão compreendido que a glória está no amor e na responsabilidade pelo outro. Eles já aprenderam a nutrir a inteligência que permite garantir uma fé raciocinada, aquela que ajuda a manter o rumo. Nunca se está só, nem eles, pelo que há que saber nutrir este saber. Fé é saber, não é crença mistificada ou dogmática.

Atentemos, pois, aos que nos tentam aquebrantar as forças, isto para que saibamos não lhes dar ouvidos. A este propósito lembremos estas palavras do Espírito Emmanuel [4]:

“Disseram, que não vencerás em teus empreendimentos; Que o teu doente querido está no clima da morte; Que atravessarás longa noite de provações; Que não mais encontrarás o trabalho que mais desejas; Que não te recuperarás de certas perdas sofridas; Que não realizarás os sonhos que acalentas; Que os entes amados distantes de ti nunca mais te voltarão ao convívio; Que o desgaste do corpo físico não mais te permitirá as realizações que tanto almejas; Que, por essa ou aquela falta, andarás sobre a terra constantemente sobre pedras e espinhos. Tudo isso disseram… Entretanto, continua agindo e servindo, orando e esperando, porque as opiniões de Deus são diferentes.”

 

Referências

[1] XAVIER, Francisco Cândido, orientado pelo Espírito Emmanuel, Há Dois Mil Anos, FEB, 2004.

Título: Há dois mil anos

[2] Recuperado de https://www.rtp.pt/programa/tv/p6017.

[3] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Publicações Hellil.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo

[4] XAVIER, Francisco Cândido, Momentos de Paz, pelo Espírito Emmanuel, 4.ª Edição, Capítulo 10, 1986.