Ajuda-te: semear para colher

 

“Ajuda-te a ti mesmo, que o Céu te ajudará”

(Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, cap. XXV)

Muitos de nós já teremos vivido episódios em que se aplica o adágio “males que vêm por bem”. Dele extraímos a ideia de que, por vezes, as contrariedades são as pedras que fazem o caminho para se alcançar algo de positivo. É o semear para colher. Mas os “males” também podem ser entendidos como sendo os exercícios de vida (as circunstâncias) que promovem a nossa mudança interior. Eles surgem, por vezes, na forma de dor emocional (ex., resultando em angústia, tristeza, sentimento de perda), dor física (ex., refletindo-se numa depressão, na debilidade física), ou dor espiritual (ex., dúvidas existenciais). Estas circunstâncias são normalmente convites à reforma íntima do indivíduo, à resolução de conflitos entre o Self e o ego.

De forma sintética, tal como explicitado na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, no Self reside o nosso Eu maior, que promove as nossas ligações empáticas com os outros. No ego, se for o dominador do ser, temos a expressão dos desejos submetidos ao orgulho e ao egoísmo, tornando o indivíduo escravo das recompensas imediatas e dos prazeres mundanos [1].

Quando o ego se sobrepõe ao Self na gestão do ser há uma distorção da noção de bem-estar íntimo. Nestas circunstâncias o indivíduo julga encontrar a fonte do seu bem-estar naquilo que lhe é exterior fazendo com que o ego se vá esquivando aos conflitos com a sua sombra.

A sombra é a informação contida no inconsciente, gerada pelas vivências do espírito (do indivíduo) ao longo das suas diversas reencarnações, e que representa o desvio moral do qual o indivíduo tem consciência, embora o queira negar. Torna-se assim latente na pessoa. Deste facto podem resultar surpresas desagradáveis, nomeadamente em situações extremas, em que o comportamento da pessoa pode ser contrário ao esperado ou conhecido.

Como a sombra resulta de camadas reprimidas e não trabalhadas no íntimo da pessoa, desfazer a distorção sobre a noção de bem-estar interior leva o seu tempo. O processo de alinhamento íntimo necessário pode ser feito pelo trabalho de aceitação e da paciência.

O não confronto com a nossa sombra, aceitando-a e resolvendo-a, a não resolução das vontades reprimidas pode tornar-se o centro dos nossos conflitos íntimos, ou até mesmo o motor de ações inapropriadas – aquelas que sempre condenámos nos outros. E em resultado disto vem o sofrimento, invisível e silencioso.

Todos temos a nossa sombra, não a podemos negar, afinal somos herdeiros de comportamentos pretéritos moralmente endividados. Final basta olhar para a história e ver as atrocidades resultantes da debilidade moral. E quem eram aquelas pessoas, aqueles espíritos? Nós, noutras vidas. De tudo isto se fez o semear para colher, porém, não temos de sentir culpa, afinal se não nos recordamos das nossas vidas passadas é porque há um motivo. Sabemos que é por bondade de Deus, mas dizê-lo não basta, há que compreendê-lo. E o motivo é para que não sucumbamos à culpa (se foi o mal o que praticámos), ou para que não nos percamos na vaidade (se já fomos ou fizemos algo de relevante). A vida convoca-nos para a melhoria e o nascer de novo é a oportunidade, mas dá trabalho.

Somos o acumulado de aprendizagens organizadas no nosso inconsciente e o resultado moral e intelectual do que soubermos fazer por nós e pelos outros. Neste processo vamos fazendo o bem, mas também caindo no mal, e o inconsciente procedendo ao registo que molda o nosso carácter moral. E se os registos são dominados pela ignorância, em que o ego tem ascendente sobre o Self, então temos dificuldades acrescidas em manter o comportamento assertivo, a harmonia íntima.

A ignorância moral é equivalente a um ego que tenta manter-se numa postura de controle das ocorrências iludindo-se por se julgar capaz de as antecipar. Por exemplo, no caso da pessoa extremamente ansiosa, esta reflete pelo seu comportamento uma tentativa patológica de se defender contra a angústia de lidar com a incerteza e com as constantes mudanças que ocorrem na vida. Nestas circunstâncias, a pessoa deixa de viver o momento presente e na sua ânsia de controle lança no seu organismo uma carga hormonal que o prepara para a luta ou para a fuga. Um processo semelhante ocorre nas situações geradoras de stress e fuga à frustração pelo insucesso ou receio dele

Esse efeito, multiplicado nas diversas vezes em que o indivíduo fica ansioso, explica muitas das doenças psicossomáticas tão comuns nos dias atuais” (p. 37) (“Em Busca da Iluminação Interior”, pelo Espírito Joana de Ângelis, numa psicografia de Divaldo Pereira Franco e comentários de Cláudio e Iris Sinoti) [2].

No embrulho da vida moderna, em que procuramos resolver as nossas questões íntimas pela compra de tecnologia, pela satisfação de prazeres de gratificação imediata, ou mesmo pela imposição do status, do poder e de outros adornos sociais, burilamos esconderijos de nós próprios. Acabamos por valorizar de forma soberba a racionalização e a satisfação das necessidades impostas pelo ego, mantendo-nos desligados do contacto com a natureza e com o nosso Self. E ao nos escondermos por detrás desse ego adoecido é natural que ganhemos as ditas doenças da psique, ou seja, que espiritualmente fiquemos debilitados, pelo que nos distanciamos da compreensão das nossas perguntas internas conduzindo-nos a conflitos íntimos dos quais não nos libertamos [idem].

É relevante refletir no que disse o apóstolo Paulo aos romanos a este respeito, ainda que à luz do contexto da sua época, no capítulo 7, versículos 19 e 20:

“Pois não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero, esse pratico. Mas se eu faço aquilo que não quero, já não sou eu que o faço, mas sim o pecado que em mim habita”.

O pecado a que se refere Paulo, tal como explicado no livro “Em Busca da Iluminação Interior”, é o que nele estava latente, era a tendência do seu comportamento, herdeiro das experiências pretéritas. Porém, Paulo rendia-se à sua sombra, ou seja, ao pecado (termo usado à época seguindo a tradição religiosa e sociocultural). Paulo não tentava dominar a sua sombra, esmagá-la, ou escondê-la, mas sim dilui-la, no sentido de continuar no bem que queria [idem]. Em síntese, é importante notar que:

“Nas suas máscaras, a sombra projeta no ego as ações do bem, sem que ele realmente saiba do que se trata. Quando isto ocorre, aparece em manifestações graves, como complexo de poder, presunção, interesse pela redistribuição, exigência de reconhecimento, disputas em batalhas renhidas e mal disfarçadas, em ciúmes… O bem realizado em tais circunstâncias faz mal, porque indispõe os seus realizadores contra os outros, ou humilha os que pretendem auxiliar, gerando dificuldades e contendas nos relacionamentos.” [idem, p.19]

No capítulo XXV do “Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, lê-se o seguinte ensinamento de Jesus: “Buscai e achareis”, e, ainda: “Ajuda-te a ti mesmo, que o Céu te ajudará”. Isto significa que aquele que busca em si as respostas vai encontrá-las, pois somos um depósito de saber e comportamentos acumulados. Se procurarmos as respostas sobre as nossas angústias, medos, ou debilidades, encontraremos formas de com eles lidar, desde logo, melhorando a nossa relação connosco mesmo e com os outros.

Neste sentido, a ajuda que habitualmente buscamos para lá de nós, por exemplo, pedindo-a ao Céu, na verdade, vamos encontrá-la em nós mesmos. Ela não está nas “máscaras”, i.e., adornos sociais, materiais, ou na satisfação de necessidades excitadas pelo ego. Esse é o tipo de ajuda que equivocadamente buscamos para lá de nós.

Para nos ajudarmos podemos usar a meditação, a oração e a harmonia com a natureza como meios para nos pormos em sintonia com o nosso Self, e, neste processo, receber apoio dos nossos amigos do plano espiritual. Esse apoio pode chegar-nos na forma de inspiração à resolução de problemas, estímulo à criatividade, ou à ação. Pode ainda chegar-nos como suporte à intuição.

Nenhum de nós existe para viver em competição consigo mesmo ou com outros, mas sim para evoluir espiritualmente, ou seja, para desenvolver o ser total que se manifesta nas suas facetas intelectivas: racional, emocional e espiritual. Os impedimentos a esta natural evolução têm origem nas nossas escolhas, no nosso comportamento, nas prisões que nos amarram aos ciclos de repetição e dependência em que vivemos. Fazemos isto sem que ganhemos consciência de que as piores prisões são os nossos conteúdos inconscientes [idem] – onde se encontra a sombra que tem de ser confrontada, aceite e trabalhada.

Se ao fazermos este exercício de harmonia íntima lhe juntarmos a compreensão das Leis (morais) de Deus, tal como a lei de causa e efeito, então é-nos mais fácil raciocinar sobre a necessidade de fortalecermos a paciência face aos obstáculos. Estes exercícios pedem-nos esforços ao coração que se concretizam na vivência de provas e expiações que visam a correção de erros, o ganho de aprendizagem e a reunião de forças morais que permita evitar a repetição dos mesmos erros. O manancial de conhecimento que observa estes assuntos está reunido nas cinco obras da Codificação Espírita organizadas por Allan Kardec, a partir das explicações dos Espíritos sobre os ensinamentos do Cristo.

Lembremos o que disse Jesus: “Em verdade vos digo que quem não atender ao meu chamado por amor o atenderá pela dor”, ou seja, não nos falta informação sobre como vivermos e qual a importância da prática do bem e a correção de conduta para que possamos gerar mais bem-estar. O seu contrário adensa a sombra com a qual o indivíduo vai ter de se confrontar para se ir libertando da dor. Dor, que não surge como castigo, mas sim como resultado do comportamento. O castigo é uma construção humana. A dor, a que Jesus se refere, é o instrumento para tornear a debilidade moral. Se observarmos com atenção vamos encontrar na ciência a mesma fórmula de há 2 mil anos, trazida por Jesus, sobre como nos conduzirmos à melhoria de bem-estar.

 

Referências

[1] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joanna de Ângelis, Refletindo a Alma: A Psicologia Espírita de Joanna de Ângelis, LEAL, 4ª edição, 2016.

Título: Refletindo a Alma, a Psicologia de Joanna de Ângelis

[2] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.

Título: Em busca da iluminação interior