No mundo tereis aflições: dor e sofrimento

 

Este mundo é ‘de’ expiação e provas, ou será antes ‘para’ expiação e provas? A primeira transmite-nos uma ideia de determinismo, a segunda de transitoriedade. Na primeira temos o sofrimento como sinal de desequilíbrio, na segunda temos a dor como oportunidade.

 

O que é a dor? É um alerta, pelo que pode ser entendido como um mecanismo de chamada à ação, e por isso, de defesa, ou de crescimento e vida. Porém, a dor não é o objetivo da vida, mas sim parte do seu processo e sucesso. O recolhimento a que por vezes a situação de dor convida, pode ajudar ao questionamento sobre o nosso comportamento e, por elas, ir ao encontro de respostas que podem conduzir-nos alguma harmonia ou favorecer a nossa sintonia com Deus (no sentido de por ela não temermos a incerteza e o silêncio). Por isso, tal como com o amor, também o período de dor pode ser o veículo que nos retira da paralisia onde nada é nutrido em favor da melhoria de sentimentos, ou de entendimento sobre a vida. É o período que pode ajudar a anular conflitos ou lamentações no nosso interior.

Assim, para aplacar a dor pode ser importante resignar e reconhecer que isso não significa desistir. Significa não segurar a causa da dor, a angústia, o ou mesmo o medo que nos pode bloquear. Significa não dar abrigo à frustração, ou à revolta. Significa não converter incerteza em raiva, ou agressividade. Neste sentido a resignação é o instrumento que pode ajudar a derrubar a causa dos nossos erros – refletidos na dor (erros que por vezes tiveram origem nesta vida). E ao aceitarmos os erros, a nossa responsabilidade, abandonamos o papel de vitimização. Por isso Jesus referiu:

“A dor é uma bênção que Deus envia aos seus eleitos; não vos aflijais, portanto, quando sofrerdes, mas, pelo contrário, bendizei a Deus todo-poderoso, que vos marcou com a dor neste mundo, para a glória no céu.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, capítulo IX, nº 7).

O “bem-dizer” é uma metáfora que neste contexto significa ter a dor como mecanismo impulsionador da nossa modificação pela qual podemos, pela vida no corpo, corrigir a nossa rota moral com vista à nossa evolução. Sim, já vivemos antes, e eventualmente na Terra, tal como se compreende a partir do testemunhado, por exemplo, em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, cap. III – Há muitas Moradas na Casa de meu Pai, no item 4, é referido: “A Terra não é um mundo primitivo destinado à encarnação dos Espíritos que acabaram de sair das mãos do Criador.” (…) “… A Terra fornece, pois, um dos exemplos de mundos expiatórios, cuja variedade é infinita…” [idem], ou seja, as dores na Terra estão em contexto com as suas características e com a evolução dos seres que nela habitam (reencarnam).

Neste sentido, ao termos vivido antes progredimos na medida dos esforços realizados. Mas também teremos tido as nossas quedas, morais. Face a isto renascemos no contexto que melhor nos serve para beneficiarmos do trabalho já realizado, mas também naquele que permite modificarmos vícios não vencidos, e, assim, expiarmos os nossos enganos morais. É o exercício da lei de causa e efeito, tal como se sublinha nesta passagem: “As qualidades inatas que eles trazem consigo [espíritos reencarnados] constituem a prova de que já viveram e realizaram certo progresso. Mas, também, os numerosos vícios a que se mostram propensos constituem o índice de grande imperfeição moral. Por isso os colocou Deus num mundo ingrato, para expiarem aí suas faltas, mediante penoso trabalho e misérias da vida, até que hajam merecido ascender a um planeta mais ditoso”. [1]

Poderíamos então resumir estes ensinamentos à importância de aceitarmos a nossa fragilidade. Ela que deriva do conflito entre ego (onde reside o egoísmo, o orgulho, a fonte que nos impele ao imediatismo e a vícios) e o Self (a alma, o nosso elevador moral). Ambos laboram para a nossa evolução, mas enquanto estiverem descompassados teremos dificuldades de harmonia, logo, dor e necessidade que ela se expresse. Temos, pois, de largar as máscaras que colocamos para nos escondermos das fragilidades e que usamos para suportarmos o ser que julgamos ser, ou que almejamos ser, mas que afinal ainda não somos.

Uma das ferramentas que nos permitem avançar é o perdão. Ao nos perdoarmos largamos a culpa, que nada resolve, apena gera tormenta. E ao perdoarmos aqueles que connosco falharam ganhamos liberdade, não porque libertamos o ofensor, que às tantas nem se dará conta, mas sim porque nos libertamos nós do tormento da vingança, da ofensa, da vitimização. O perdão é para aliviar a dor.

O perdão é ainda a um importante instrumento de restabelecimento de laços quebrados, mas também de caridade para com aqueles que caiem moralmente, tal como acontece connosco. Todavia, não esquecer que o perdão é para ser entregue a nós e a outros. A nós, porque ao sermos desatentos e imperfeitos erramos, pelo que devemos perdoar-nos. Se não o fizermos carregamos culpa, quando basta assumir responsabilidades. Aos outros, porque se nos soubermos perdoar também saberemos perdoar as faltas dos outros. E quando o fazemos resolvemos os nossos sentimentos negativos. Compreendemos que as dores que nos infligiram resultaram da prova pela qual tínhamos de passar, pois as nossas faltas do passado colocaram aquela prova no caminho com vista à expiação e melhoramento moral. Vencê-la é também saber perdoar e assim ganharmos liberdade.

Há erros habituais, tais como os que resultam do orgulho, egoísmo, vaidade, ganância, cupidez, etc. Como vencê-los? Com paciência. A paciência é o autocontrolo emocional que por meio da resignação nos permite vencer a dor durante o processo de aprendizagem, de prova e expiação.

“Sede pacientes, pois a paciência é também caridade, e deveis praticar a lei de caridade, ensinada pelo Cristo, enviado de Deus. A caridade que consiste em dar esmolas aos pobres é a mais fácil de todas; mas há uma, bem mais penosa, e consequentemente bem mais meritória, que é a de perdoar os que Deus colocou no nosso caminho para serem os instrumentos dos nossos sofrimentos e submeterem à prova a nossa paciência.” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, item 7, cap. IX).

Compreender tudo isto é exigente, mas também é a única forma de almejarmos a viver melhor. Perverter esta verdade e ignorar a reencarnação é, por vezes, alimentar a desesperança sobre o valor de viver para evoluir (em oposição ao sofrer por culpas), o que distorce o significado das dores sentidas. E porque a dor é um engenho de mudança, a dor desacomoda-nos convidando-nos ao aprimoramento.

Afinal, a dor é tal como o ato de caminhar. Ao movimento das pernas corresponde a impulsão, que nos mantém em equilíbrio. Sempre que uma perna avança desequilibramo-nos e por isso avançamos com a outra, o que implica o movimentando para diante. A dor desequilibra, pelo que nos põe em movimento, para diante, se munidos de bons sentimentos. Essa impulsão conduz-nos ao melhoramento.

A dor é também um instrumento para exercitarmos a compaixão por aqueles que a vivem. O mesmo é dizer que o propósito dos nossos dias deve conter a criação de laços de amor e o restauro dos de dor.

Porém, há que notar que dor e sofrimento são coisas diferentes. Com referido, se dói é porque há um alerta para agirmos, mas se é sofrimento aquilo que sentimos, então é porque não estamos a vigiar.

O sofrimento é descompensação, não desequilíbrio, pelo que pode ser interpretado como um mecanismo de fuga, de estagnação, ou de morte. Se o sofrimento nos conduz à descompensação, então deve ser reparado buscando-se a objetividade, o “autoconhecimento”. Afinal, se já vivemos outras vezes, também já caímos nessas vezes, pelo que temos em nós os instrumentos de cura e de reação para que não fiquemos quietos face ao sofrimento.

Por vezes procura-se no par romântico (namorada/o) o remédio para o vazio interior, que é a estagnação. Mas esse vazio não se preenche com o “outro”, mas sim com o nosso bem-estar e por aquilo que se dá sem se esperar receber. E se não vemos isto, é porque ainda não parámos para pensar. Ainda não teremos ganho consciência sobre o nosso comportamento, ou sobre se estamos preparados para o amor.

Se calhar nunca nos detivemos para nos questionarmos sobre se sabemos dar atenção aos outros independentemente desse outro ser o par desejado. E quando absorvidos pelo carpir do sofrimento, pela estagnação, pela solidão romântica, pela desarmonia do ego, então é provável que nos mantenhamos não despertos e não preparados para uma vida a dois, pois poderemos estar, ainda, num estado demasiado egoísta. Afinal, se a pessoa desejada surgisse na nossa vida antes de nos desembaraçarmos dessa nossa sombra (onde residem as fragilidades que deveremos aprender a aceitar e, assim, nos melhorarmos), essa desejada pessoa ao se deparar com a nossa incapacidade para nos darmos ao amor poderia ser conduzida (desmerecidamente) ao sofrimento, e por consequência, também nós assim sentiríamos. Talvez por isso a vida nos prive, temporariamente, dessas desejadas pessoas, para que não as percamos, uma vez mais. Afinal, primeiro, a vida convida à mudança, e, depois, à conquista para lá de nós.

 

Referências

[1] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Hellil, 2018.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo
XAVIER, Francisco Cândido, No roteiro de Jesus, FEB
Título: No roteiro de Jesus