Vencer tendências de comportamento: egoísmo

 

“Seja qual for a coisa que ande mal no mundo, o homem deve saber que o mesmo acontece dentro dele e, se aprender a arranjar-se com a própria sombra, já terá feito alguma coisa pelo mundo” 

(Carl Gustav Jung) [1]

A metáfora sobre o olhar crítico de terceiros a partir da estória do menino, do idoso e do burro revela-nos que há sempre quem nos vai julgar seja qual for o quadro apresentado. Nesta estória conta-se que aqueles três iam estrada fora e que ao ouvirem as críticas ao velho e ao menino por irem em cima do burro, que os tinha de aguentar, o velho decide apear-se ficando somente o menino em cima do burro. Seguindo caminho escutaram novas críticas, desta vez por o pobre velho ir a pé. Decidiram trocar. Apeou-se o menino e seguiu o velho no burro. Não faltou muito até que outros criticasse o que viam. Decidiram então apear-se os dois. Mas não tardou até ouvirem risos de troça sobre a tolice de terem um burro e irem a pé. Terminaram por colocar o burro às costas e prosseguir…

Na história destes três há um elemento em comum: o juízo crítico de alguém perante o outro. Todavia, a vida dos outros não nos diz respeito, pelo que não deveria ser da nossa conta opinar sobre quem vai ou deveria ir no burro, mas deveria ser da nossa preocupação o questionar sobre se alguns dos três precisaria da nossa ajuda. É da nossa conta estarmos atentos a estas e a outras dádivas que o dia-a-dia nos põe à disposição. Isto, em vez de praticarmos a crítica e o “acho que…”. Em vez de nos limitarmos, devemos expandir-nos.

O mesmo sucede sobre aquilo que o outro tem. Todos reparam em todos, naquilo que têm e naquilo que lhes está em falta. Comenta-se por inveja ou para criticar. Valoriza-se a posse e a pessoa que consegue ter, em vez do ser da pessoa. E muitos há que pensam que ter é representativo de poder, mérito e eventualmente o cume do que se deve almejar na vida. Outros há que acreditam que pobreza é sinónimo de preguiça, perigo ou mesmo de défice de carácter. Entre uns e outros há os que vivem no seio da inveja, do desdém, do orgulho, da falta de caridade material e moral. Há, assim, os que criticam como reflexo do seu sentimento de culpa, reprimida. Pois, a crítica lançada pode ser o efeito espelho da própria sombra, sendo esta a “manifestação inconsciente dos arquivos do Self, que automaticamente surpreende, inclusive, o indivíduo que a projeta“ [2, p. 19].

Mas a sombra não é apenas o conteúdo arquivado no inconsciente resultante do nosso comportamento moral em vidas passadas (origem de muitos dos conflitos que atordoam o indivíduo) e do psiquismo presente (que burila desde o desconforto e mal-estar, até à instabilidade dos valores conscientes), pois, ela é, também, a guardiã da informação sobre tendências que carecem de alteração. Talvez por isso o inconsciente, área que aloja a sombra, também acomode a informação relativa aos valores positivos que permitem a ação do bem, da criatividade, do trabalho artístico –, estes enquanto instrumentos de renovação do indivíduo. Diríamos, assim, que a ação de dar (o amor) é o instrumento de trabalho interior que liberta o indivíduo da sua sombra conduzindo-o a maior bem-estar consigo mesmo.

Para podermos alterar o comportamento imanado por um ego doente, de cujo comportamento egóico ressalta a crítica, o egoísmo e outros elementos perturbadores do indivíduo, temos de ganhar consciência sobre o que somos. Por norma somos iguais aos que condenamos.  Sem darmos por isso, fazemo-lo para enfrentar a nossa própria sombra.

Neste sentido, é importante eliminarmos a energia psíquica que usamos para criticar, acusar, ou apontar o que está errado ou  julgamos estar errado. Como? Dedicando algum do nosso tempo a ajudar outros. Dessa forma recanalizamos a energia psíquica aprisionada e ganhamos perspetiva para nos pormos no papel de observador de nós próprios. Talvez possamos ver pelos outros a nossa sombra, as nossas fragilidades, não para nos criticarmos, mas para nos auxiliarmos [2], para fazermos o contrário do fechamento em comportamentos egóticos. Sim, podemos educar o nosso espírito, logo os nossos sentimentos e comportamento, para nos darmos ao outro.

“O egoísmo, esta chaga da humanidade, deve desaparecer da Terra, porque impede o seu progresso moral. (…) Que cada qual, portanto, dedique toda a sua atenção em combatê-lo em si próprio, pois esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do orgulho, é a fonte de todas as misérias terrenas. Ele é a negação da caridade, e por isso mesmo, o maior obstáculo à felicidade dos homens.” (Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XI, item 11, pelo Espírito Emmanuel).

De facto, o egoísta tudo vê de forma enviesada, pois o seu observatório da vida é o ego, quando deveria ser o Self (a alma). A maior preocupação do egoísta é o seu bem-estar, as suas coisas e a manutenção dos seus privilégios. A crítica e o descaso para com tudo o mais, de forma mais ou menos notória, caracterizam a sua maneira de estar. O seu ego, doente, apenas responde às solicitações que lhe acrescentam algo; dar sem nada em troca é algo que lhes faz pouco sentido.

“O egoísmo é a negação da caridade. Ora, sem caridade não há tranquilidade na vida social, e digo mais, não há segurança. Com o egoísmo e o orgulho, que andam de mãos dadas, essa vida será sempre uma corrida favorável ao mais esperto, uma luta de interesses, em que as mais santas afeições são calcadas aos pés, em que nem mesmo os sagrados laços de família são respeitados.” (Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XI, item 12, pelo Espírito Pascal).

A vivência egoísta obscurece raciocínio, o que dificulta a interpretação que o bem do outro é o bem do próprio indivíduo. Assim, quem vive fora daquela zona de sombra, ou seja, quem sabe amar, facilmente encontra propósitos para a vida após retornar à realidade espiritual, tal como se depreende do testemunho do espírito da Sra. Fulon. Esta refere que podemos estar menos separados na morte do que na vida de quem mais amamos (O Céu e o Inferno, Parte 2, Cap. II), ou a quem mais nos ligamos. pois, a distância física é difícil de superar, mas a espiritual está à distância do pensamento.

O indivíduo que se comporta como um egoísta demonstra pouca solidariedade, inclusive para com a sua família, mas também pouca inteligência no seu viver. Se agirmos desse modo teremos igualmente outros tantos preocupados com o nosso bem-estar. Pelo que se todos se centrarem no outro, então cada um terá a atenção de tantos quantos estiverem nessa rede de interação. Há neste caso inteligência distribuída em favor de todos e de cada um. Isto, em vez de se ter apenas a atenção do próprio, tal como sucede com o egoísta.

As ciências sociais explicam que fora do nosso círculo de proximidade (i.e., dos amigos, familiares ou colegas de trabalho, onde partilhamos informação, atenção e recursos), há novos recursos e informação ao nosso alcance. Podemos tê-los e nos enriquecermos com a novidade existente para lá da nossa zona de interação habitual. Para isso é relevante a atitude manifestada (mental e comportamental) e a forma de interação com as pessoas que nos ajudam a aceder a outros grupos por meio das pontes que estabelecem. Estas “pontes” são canais de acesso à novidade e a recursos alternativos. E se a esta forma de interação social somarmos uma maior atenção para com o outro, então estamos a expor-nos a uma gigantesca rede de apoio ao nosso desenvolvimento humano.

Devemos agradecer a oportunidade, não temer o tempo e a atenção dispensada aos outros, pois esse tempo também está a moldar o nosso comportamento moral – sempre carente de melhoria e vigilância. E porque “Deus não joga aos dados…”, tal como referia Einstein, há uma coerência entre as leis que regem a natureza, a sociedade e a de causa e efeito – que rege o desenvolvimento moral.

A aplicação da lei de causa e efeito coloca cada um no cenário, ou no exercício de vida, que melhor se adequa à vivência de experiências que permitem aprendizagem face a erros cometidos e assim, de se poder lidar com a sombra que encobre a expansão do Eu maior (o Self), mas também beneficiar do bem praticado. Vive-se o efeito na exata medida da causa que lhe deu origem. A oportunidade face a esta dialética é o instrumento de aprendizagem espiritual a que todos estamos sujeitos.

Os defeitos devem ser progressivamente anulados pelas virtudes – o mesmo é dizer que a sombra não deve ser reprimida, mas sim aceite e trabalhada na medida que nos vamos transformando. E neste progresso, há que despertar para que os defeitos não sejam manipuladores da nossa personalidade, ou mesmo fatores de depreciação da nossa autoestima e confiança. Os defeitos são, afinal, o contrapeso de uma tendência, que, ao ter sido exacerbada no passado (vidas passadas), nos terá precipitado para alguma forma de queda moral. As suas consequências manifestam-se no nosso carácter e na forma como a vida se nos apresenta – as oportunidades vs. condicionalismos. Por isso as nossas fragilidades e ditos defeitos não surgem, a par dos constrangimentos do viver como um castigo, mas sim como um exercício para que deles nos libertemos.

Aprender e corrigir é a meta e, por aí, ganhar bem-estar. Por isso, não podemos dar abrigo ao que nos “empurra (moralmente ou eticamente) para baixo”. Deve ser a alma a tomar conta do nosso ser, não o ego na sua necessidade de respostas imediatas a prazeres ou à materialidade das coisas. Tudo isto é bem-vindo, se não o for como resposta viciada e controlada pelo orgulho, ou pelo egoísmo.

Temos de ter a coragem de ir abandonando o «eu» do «Homem velho» para erguermos, a cada dia, o «Homem novo» – o Self, e por aqui, o afeto e a empatia como propósito dos nossos dias. Se o sentido da vida é dar amor, significa que a nossa atenção se deve centrar no outro (é a ação do Self – gerador de empatia), sendo este um entendimento mais inteligente sobre a vida.

Viver para lá do egoísmo é também intuir ao bom caminho, pelo que temos de ser ativos no diálogo connosco ou com quem vela por nós do outro lado da vida (pela oração, pelo recolhimento e concentração, pela prática que nos ponha em ligação, em silêncio íntimo). Ninguém saberá amar na rua se em casa apenas souber gerar a discórdia ou viver na sombra do egoísmo. E é neste sistema de reciprocidade que semeamos as flores que vamos colher. E elas devem ser semeadas para lá dos sofrimentos do materialismo, tais como os referidos pelo escritor português Eça de Queirós (1845 – 1900, nascido na Póvoa do Varzim):

“Os espíritos não podem respirar o ar moderno pesado de materialismos: sufocam, sofrem, gemem; e então, como o abor­recido que cantou Henri Heine, pedem os ciúmes, as violências escuras, os rasgões da carne, os roubos, os beijos entre lábios tintos de sangue.” [3]

 

Referências

[1] JUNG, C. Gustav, Psicologia e Religião, Petrópolis: Editora Vozes, 1991.

[2] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.

Título: Em busca da iluminação interior

[3] KARDEC, Allan, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Hellil, 2014.

Título: O Evangelho Segundo o Espiritismo
[4] KARDEC, Allan, O Céu e o Inferno, Hellil, 2020.
Título: O Céu e o Inferno
[5] QUEIRÓS, Eça de, Prosas Bárbaras, Edições Europa-América, Mem Martins, 1988.