Da prova académica ao íntimo espiritual

 

“O Espiritismo apresenta essa vantagem inapreciável de satisfazer, ao mesmo tempo, a razão e o sentimento. Até aqui essas duas potências da alma estiveram em luta, em perpétuo conflito. Daí uma causa profunda de sofrimento e de desordem para as sociedades humanas. A religião apelando para o sentimento e afastando a razão, caía frequentemente no fanatismo, no erro. A Ciência, procedendo em sentido contrário, permanecia seca e fria, impotente para regular os costumes. (…) Através dessa conciliação do sentimento e da razão, o Espiritismo se torna a religião científica do futuro” 

(Léon Denis, No Invisível, p. 134)

As expressões da mediunidade são a forma natural como esta forma de sensibilidade está na vida de tantos de nós. Relatemos alguns testemunhos. Uma pessoa amiga, médica anestesista no hospital de Santo António no Porto, revelou-me que era habitual ver em espírito uma senhora idosa na casa onde habitava – era uma casa antiga. Dizia-me que esses encontros não a assustavam, mas perturbava-a o suficiente para que um dia pedisse (ao Alto) de forma fervorosa que a libertasse dessas visões.

Um outro amigo contou-me que uma vez, em correria animada com os filhos em casa, ao sair de um dos compartimentos deu um grito dizendo: “cuidado com o homem da bicicleta!”. As crianças não lhe ligaram, mas a esposa, que igualmente ia junto naquela correria, parou e perguntou: “mas a que bicicleta e a que homem te referes?”. Sorriu e não respondeu, pois sabia que apenas ele tinha visto a imagem que o alertou. Apesar de saber que a sua mediunidade lhe dava acesso àquele tipo de perceções, não lhe era fácil distinguir no imediato a sobreposição das realidades terrena e espiritual. O inusitado provocava-lhe surpresa e reagia, tal como lhe sucedeu ao ver o homem de bicicleta. Como se explica isto? De forma simples, imagine-se ver o que se passa do lado de lá de uma parede através de uma fenda – de um lado está a pessoa, na dimensão terrena, e do outro está a dimensão espiritual.

Uma outra pessoa contou-me que em 1969, no período de nascimento do seu primeiro filho, lhe tinha sido diagnosticado epilepsia. Receitaram-lhe “medicação para toda a vida” (termo usado pelo médico). Porém, meses depois, um outro médico aconselhou-a a abandonar essa medicação. Facto é que os episódios epiléticos nunca mais se repetiram, não por causa da medicação, ou falta dela, mas pelo erro no diagnóstico. As convulsões eram devidas a perturbações associadas à incorporação espiritual compulsiva – em situações de elevado stress, ou excitação emocional, a mediunidade pode despertar, ou manifestar-se, podendo cessar ou surgir de forma mais consciente e controlável no retorno à acalmia.

Os casos descritos são mais comuns do que julgamos, são o que aqui designamos por expressões da mediunidade, podendo estas variar de intensidade e de forma. O desconhecimento e por vezes o preconceito silenciam o que deveria ser encarado com naturalidade: a mediunidade, a manifestação mediúnica, a comunicabilidade dos espíritos, a sua interferência com o nosso bem-estar, mas também com a nossa capacidade criativa e de invenção.

São inúmeros e oriundos de todos os tempos os relatos da relação do ser humano com os espíritos [1]. A este respeito a História testemunha, por exemplo, o Código dos Vedas – o mais antigo código religioso conhecido, e que regista a existência dos Espíritos. Testemunhos semelhantes são oriundos do antigo Egipto, da Suméria, da Babilónia, da antiga Grécia e dos Celtas. Do Cristo, são igualmente inúmeros os ensinamentos a este respeito, tal como atestaram alguns dos apóstolos sobre a prática mediúnica:

o profeta da paz, era médium de incorporação, quando o Espírito o tomava, pregava contra a guerra aos exércitos de Nabucodonosor.” [2] (Jeremias, 39: 15).

Um outro exemplo encontra-se em Daniel, que refere:

Levantei os olhos, e olhei, e vi um homem vestido de linho (…) o seu rosto como um relâmpago. Só eu, Daniel, tive aquela visão; os homens que estavam comigo nada viram, não obstante, caiu sobre eles grande temor, e fugiram e se esconderam (…) contudo ouvi a voz das suas palavras, e ouvindo-a, caí sem sentido, com o rosto em terra” (10:5-9).

Muitos outros exemplos poderiam ser dados e interpretados à luz do conhecimento Espírita, tais como os relatados no livro de Luiz Gonzaga Pinheiro “Mediunidade para Iniciantes” [2], e ainda as referências por Moisés, Paulo de Tarso, César, Calígula, Nero, Rainha Victória, Catarina da Rússia, etc. [idem]. Em suma, são diversas as práticas ancestrais, místicas e ritualísticas, que já patenteavam o fenómeno mediúnico.

Aquelas descrições revelam a forma como a força psíquica da mediunidade foi atravessando os séculos até ser cientificada pelo Espiritismo em meados do século XIX com o lançamento do primeiro livro da Codificação (1857). O conhecimento tratado pelo Espiritismo foi avançando, esclarecendo e desfazendo dogmas, tendo inicialmente que suster a repulsa de religiosos dogmáticos, materialistas e embrutecidos pela ignorância estática das suas instituições.

Porém, a Verdade é inexorável: somos seres espirituais a vivenciar experiências físicas com vista à evolução e durante a qual, na fase atual, o ser humano vive missões, provas e expiações; Deus é misericordioso, infinitamente bom e promotor de todas as leis que regem a vida – pelo que, sendo amor, não condena ninguém a penas eternas; Todos os espíritos estão destinados à evolução para o bem e pelo bem; Todos podemos ser deuses, na Terra, pois somos a chave da nossa transformação moral.

Somos nós que temos e podemos ajustar ego e Self (alma), aperfeiçoando as nossas relações com no seio do nosso ser espiritual; Todos podem curar-se e curar, não pelo milagre, mas pelo amor, pela fé, pelo conhecimento da mediunidade (magnetismo humano) e pelo trabalho em prol da sua harmonia interior; Jesus, nascido de Maria, gerado e reencarnado segundo as leis da vida, não é Deus, nunca fez milagres, mas sim obras por meio da sua mediunidade e conhecimento espiritual, e nunca fez referências à criação de uma religião, mas sim à importância de se testemunhar a Boa Nova.

A partir dos trabalhos da Codificação Espírita, produzidos por Allan Kardec, foram-se sucedendo incontáveis provas empíricas sobre a comunicabilidade dos espíritos, nomeadamente por meio de materializações, ruídos, pancadas, levitação de objetos, psicofonia (diálogo com os espíritos por meio de um médium), entre outros. Manifestações mediúnicas e espirituais cada vez mais complexas e inteligíveis para a perceção humana. E é nesta sequência que se inicia a desmistificação do que é a realidade espiritual, tantas vezes oprimida, escondida, ou mesmo relatada de forma acanhada.

O distinto Léon Denis, um dos principais pensadores do Espiritismo após a morte de Allan Kardec, a par de Gabriel Delanne e Camille Flammarion, na sua obra “No Invisível” [3] faz referência a diversos trabalhos produzidos por indivíduos da ciência atestando a veracidade do fenómeno Espírita. Muitos desses trabalhos mereceram publicação emProceedings de diversas revistas de ciência [idem, p. 271], nomeadamente nas Sociedades de Estudos Psíquicos Americana e Inglesa. Num desses Proceedingspode ler-se o testemunho do Dr. Richard Hodgson, vice-presidente da S.P.R. americana, e acérrimo adversário da mediunidade até aquela data:

Há doze anos que estudo a mediunidade da Srª Piper. No início, eu só queria uma coisa: nela descobrir a fraude e o embuste. Entrei em sua casa profundamente materialista, com o objetivo de desmascará-la. Hoje, digo simplesmente: Eu creio!… A demonstração me foi feita de maneira a me tirar até a possibilidade de uma dúvida.” [idem, p. 272].

Estes eventos, comuns nos finais do séc. XIX e início do séc. XX, foram perdendo expressão no campo das ciências para darem lugar a trabalhos no campo da literatura, nomeadamente pelos trabalhos de psicografia de diversos médiuns. Alguns exemplos sãos as inúmeras obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, entre tantos outros.

Neste percurso, os “metapsiquistas e parapsicólogos do passado se ocuparam, e se ocupam, em demonstrar a veracidade do fenómeno mediúnico enquanto que os espíritas de hoje lhe mostram o alcance, a serviço do bem-estar dos médiuns e na prática da caridade aos desencarnados. Ir além disso, que é necessário, é disseminar o uso da mediunidade na vida prática do ser humano sem torná-la instrumento de degradação dos valores morais já conquistados.”  [4, p.14].

E é neste sentido que as obras produzidas por meio da psicografia de médiuns credíveis, a partir de Espíritos de elevada envergadura moral, são tão importantes. Estas acrescentam esclarecimento e saber ao conhecimento sistematizado por Kardec, adequando, por vezes, a linguagem ou o detalhe aos folhos inconscientes dos encarnados contemporâneos. E no detalhar destes saberes há o manancial reunido em torno da mediunidade.

“A mediunidade é faculdade humana e deve ser utilizada para a felicidade do ser encarnado ou do desencarnado (p.14) [4], pelo que que permite a relação entre o ser humano e os espíritos” [5], sendo que esta acontece de forma mais ou menos consciente em diferentes graus e mediante a sensibilidade da pessoa. A relação de comunicação entre espíritos (desencarnados) e as pessoas (espíritos encarnados) dá-se por intermédio da glândula pineal, pela qual se processa a receção e a transmissão do pensamento. Pelo pensamento somos inspirados, ajudados ao uso da intuição, mas também perturbados e manietados. E pela educação espiritual e pelo exercício da vontade, respaldada na elevação moral do indivíduo, o pensamento mantém-se em sintonia com os que nos podem ajudar e inspirar ao progresso, daqui o ensinamento de Jesus: “Orai e vigiai”.

A criação de evidências por parte dos Espíritos sobre a nossa realidade espiritual tem percorrido diversas fases ao longo dos tempos. Depois de cumprindo o objetivo de produzir as primeiras provas junto da comunidade académica (séc. XIX e parte do séc. XX), a espiritualidade superior parece ter dirigido a sua ação para a sua efetiva missão: consolar.

Na Casa Espírita, por exemplo, o consolo é prestado por meio da instrução, da edução da mediunidade e de tratamentos espirituais que promovem a saúde física e o bem-estar geral. Os instrumentos para esta ação são a palestra pública, o passe magnético, a toma da água fluidificada, a literatura espírita, os cursos sobre espiritismo e mediunidade, e ainda os tratamentos nas salas de trabalho mediúnico, nomeadamente aqueles que são organizados conciliando o conhecimento sobre a mediunidade e o das ciências e da medicina. Muitos destes são tratamentos complementares à ajuda médica clínica.

O Espiritismo, simultaneamente que promove uma atitude mais compassiva, de aceitação e resiliente, também dá acesso aos meios de conhecimento que permitem ao indivíduo compreender a razão do sofrimento e as responsabilidades face a este. Uma responsabilidade que deve predispor o indivíduo a trabalhar em prol de si e dos outros apelando-lhe às forças do coração e ao uso da razão para superar a sua sombra (i.e., as suas fraquezas), mas também para estimular a descoberta, a criatividade, o desenvolvimento da ciência, da arte, do belo… tudo deriva da inspiração recebida do plano espiritual. Ignorar a responsabilidade e negligenciar a oportunidade de melhoria íntima é continuar-se escravo do orgulho, do egoísmo, da vaidade e das tensões promovidas pela cupidez.

Perante o avanço moral da sociedade devíamos analisar o avanço do conhecimento. Mas negligenciamos o primeiro em favor das conquistas do segundo. Por isto, ainda estamos aquém do que se pretende para o ser humano, pois continuamos a racionalizar Deus, a confundir temor com amor, submissão com fé e a trocar a experiência direta com o Pai pela garantia de um lugar os Céus. Achamo-nos o Seu predileto e destinados às regalias.

Na verdade, continuamos a infantilizar a conceção de Deus e a não nos questionarmos sobre o que quererá de nós. E é nesta turbulência da vida moderna que cada vez mais estamos sujeitos às influências do meio, da classe, do partido, dos instintos e, isto, apesar de tanto a religião como a ciência continuarem a procurar Deus. Porém, não o encontram, pois buscam-No nas alturas celestiais e nos cálculos da física e da matemática. Afinal, acabámos por materializar o processo religioso a um ponto que não conseguimos mais o seu devido acolhimento na nossa alma. Permitimos que tudo o mais ganhasse preponderância à existência de Deus, passando-O para segundo plano. [6]

Por tudo isto urge que o Espírita dê testemunho do que já aprendeu e do facto de que o Espiritismo é um instrumento de trabalho em favor do esclarecimento sobre as nossas responsabilidades enquanto seres espirituais.

Urge que o egoísmo dê lugar ao amor, que o ego (doente) dê lugar ao Self (alma). De facto, “O Espiritismo sabiamente praticado, não é somente uma fonte profunda de ensinamentos; é também um meio de treinamento moral. Os avisos, os conselhos dos espíritos, suas descrições da vida do Além influem nos nossos pensamentos e nos nossos atos; eles preparam uma lenta modificação do nosso carácter e de nossa maneira de viver.” [3, p. 135]

Referências

[1] Recuperado de http://jornalcienciaespirita.spiritualist.one/a-mediunidade-na-antiguidade-e-em-todas-as-civilizacoes/.

[2] PINHEIRO, L. Gonzaga, Mediunidade para Iniciantes, EME, 2017. Recuperado de https://books.google.pt/books?id=0BcwDwAAQBAJ&pg=PT7&lpg=PT7&dq=pregava+contra+a+guerra+aos+exércitos+de+Nabucodonosor&source=bl&ots=H7L2iKv0V7&sig=ZFA5z2t5QbC01jA6nbefQQn3d6g&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwie8dudk8bbAhXKXRQKHbZfBhcQ6AEIKDAA#v=onepage&q=pregava%20contra%20a%20guerra%20aos%20exércitos%20de%20Nabucodonosor&f=false.

[3] DENIS, L. (2011), No Invisível, 2ª Ed, FEB, do original de 1911.

Título: No Invisível

[4] NOVAES, Adenáuer M.F., Psicologia e Mediunidade, 1ª ed., Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2002.

[5] Recuperado de http://www2.diariodaregiao.com.br//vidaeestilo/divaldo-pereira-franco-a-mediunidade-não-pertence-ao-espiritismo-1.14886.

[5] FRANCO, Divaldo, pelo Espírito Joana de Ângelis, comentado por Cláudio Sinoti e Iris Sinoti, Em Busca da Iluminação Interior, LEAL, Salvador, 2017.

Título: Em busca da iluminação interior